Último dia do festival reforça a resistência do audiovisual brasileiro contra a censura

Último dia do festival, que foi marcado por emoções proporcionadas pelo cenário invernal da Serra Gaúcha e pelas histórias contadas em uma edição que é sinônimo de resistência do audiovisual brasileiro.

Da redação: Vinicius Bogea

Por Márcio Sallem, enviado especial do JP

Gramado/RS

Desde o dia 16, Gramado virou a capital do cinema nacional e latino-americano, com as estreias de produções aguardadas (Bacurau, Hebe – A Estrela do Brasil, Vou Nadar até Você) e também um recorte da produção sul-americana, com produções da Argentina, Bolívia, Chile, Costa-Rica, Equador, México e Uruguai. Muitas homenagens – Carla Camurati, Lázaro Ramos, Maurício de Sousa e o argentino Leonardo Sbaraglia – e emoções proporcionadas pelo cenário invernal da Serra Gaúcha e pelas histórias contadas em uma edição que é sinônimo de resistência do audiovisual brasileiro contra a censura.

Mas não precisava terminar minha primeira viagem à Gramado com dois filmes aquém à média, não é?

‘Dos Fridas’ e o simbolismo da artista

A pintora surrealista Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, ou apenas Frida, nasceu no México do início do século passado e morreu em julho de 1954. Suas bandeiras eram as da revolução comunista, adicionada à defesa do movimento feminista e LGBTQ+, e ainda inspira após sua morte a produção cultural. A seu tempo, Judith Ferreto é a enfermeira costarriquenha que a assistiu nos momentos finais de vida e, a partir de seu relacionamento, pôde absorver pedaços de sua personalidade.

A partir da história destas personagens, a diretora Ishtar Yasin adapta o brocado de Hegel e depois complementado por Karl Marx “A história repete-se sempre, ao menos duas vezes: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa” em uma narrativa desenvolvida a partir de símbolos inseridos no passado e que ecoam no presente. Uma é a Frida Kahlo em carne e osso, a outra, após o acidente de carro que lhe furtou seu discernimento, é a artista em um mundo de fantasia.

São boas as construções visuais da narrativa: como o quarto de hospital cubista onde Judith está ou o hospital em que as paredes azulejadas gotejam (lágrimas?) sobre o telefone preso no meio do corredor. Bonito, porém não funcional para estabelecer Frida e Judith além de personagens bidimensionais. Por fim, o resultado descamba para a versão de Alice no País das Maravilhas, em que Judith está na companhia dos ídolos do movimento comunista que inspiraram aquela que a inspirou. ‘Dos Fridas’ é ainda referência ao nome da primeira obra de destaque da pintora.

O cinema real de ‘30 ANos Blues’

Dirigido, escrito, fotografado, montado e atuado por Andradina Azevedo e Dida Andrade, este retrato urbano de adultos com síndrome de Peter Pan é filmado na cara e coragem com um orçamento apertado, evidenciado na qualidade da mise-en-scène, leia-se como os atores estão dispostos e se movimentam na cena e a câmera os registra e acompanha, na textura da fotografia e nos cortes secos e grossos que, por que não, conversam com o cinema francês dos anos 60, que (penso) é de onde a dupla tirou inspiração da cena inicial (um mimetismo de ‘O Desprezo’, de Jean-Luc Godard).

Entretanto, assim como o prestigiado diretor francês (ainda em atividade) é acusado de ser auto-indulgente e pedante nos trabalhos das décadas passadas que destroem e re-significam a arte cinematográfica, também a dupla de diretores. Porém, existe uma diferença seminal: esta dupla é jovem demais para aspirar a ser Godard. A partir de sequências que criticam a produção cinematográfica contemporânea nacional e defendem o que estes entendem ser a ‘arte de verdade’, encontramos a dupla (ambiciosa, sim) que questiona os valores artísticos pré-estabelecidos e resolvem reformulá-los como julgam ser o certo. Ao fazê-lo, falham em provar por que sua visão é mais pura e apaixonada do que aquela proveniente da captação de recursos a partir de editais.

Para piorar, os co-protagonistas masculinos ilustram o que de pior existe na imaturidade e masculinidade tóxica contemporânea. Dois moleques, não vejo termo melhor, que passeiam erraticamente pelas ruas de São Paulo, sem nenhuma intenção em encontrar sua vocação – não restrita ao emprego de carteira assinada – ou em compartilhar suas experiências com as mulheres ao redor. Querem apenas usufruir experiências, nem que isto implique em feri-las, em uma trajetória vazia.

Leonardo Sbaraglia: O homenageado com o Kikito de Cristal

Instituído em 2012, o Kikito de Cristal é uma premiação destinada a celebrar expoentes do cinema latino-americano. Pude acompanhar o ritual de fabricação na Cristais de Gramado. É assim que ocorre: o homenageado do ano, neste ano o argentino Leonardo Sbaraglhia (49), é quem dá o ‘sopro’ inicial na confecção do prêmio e a prensa no molde para formar a ‘cabeça’ do Kikito, a ser entregue na cerimônia do ano seguinte.

Depois do gesto simbólico, o ator respondeu a perguntas dos jornalistas presentes. Em uma delas, enfatizou como a produção argentina esvaziou após o governo de Maurício Macri ter aleijado o financiamento público da INCAA – um caminho por que o Brasil pode andar a depender das políticas públicas que serão tomadas na área de cultura. O ator também citou suas novas produções, ‘Wasp Network’, com direção do francês Olivier Assayas, a série brasileira ‘O Hipnotizador’ e também a minissérie ‘Maradona’, que estreará ainda este ano na Amazon.

A noite, o ator subiu aos palcos do Festival de Gramado e recebeu seu Kikito de Cristal. Na oportunidade, recordou os 33 anos de carreira, agradeceu a lembrança e mencionou que, às vésperas de completar 50 anos, permanecia na missão de descobrir sua carreira, disposto a sempre aprender e amadurecer em frente às câmeras. Um baita talento.

Confira a crítica completa dos longas metragens no Cinema com Crítica e amanhã volto com mais sobre Gramado.

 

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