A piada mortal do Coringa

O roteiro co-escrito por Phillips e Scott Silver (‘O Vencedor’) está ambientado no início dos anos 80, em uma Gotham suja e decadente.

Da redação: Vinicius Bogea

Por Márcio Sallem (Cinema com Crítica) 

Na eterna e frustrada tentativa de tentar compreender a maldade, nós dissertamos teses com frases de efeito, termos elegantes e explicações racionais para desconstruir o irracional e inexplicável. Por isto que, por retratar o mal com uma pureza imaculada que somente soa como contradição, o Coringa encarnado por Heath Ledger em ‘O Cavaleiro das Trevas’ penetrou e permaneceu no imaginário coletivo. O que o tornava aterrorizante era o desconhecimento absoluto a respeito de sua história, de maneira que não poderíamos prever o que almejava alcançar e como o faria. Ele, igual a violência que a loucura inspirava, era o retrato fidedigno de um câncer social de origem incerta, que se disseminava com uma velocidade assustadora, consumindo tudo o que tocava. Contudo, onde havia um otimismo por parte de Christopher Nolan, existe pessimismo na direção de Todd Phillips (‘Se Beber, Não Case’, ‘Dias Incríveis’ e ‘Um Parte de Viagem’), nesta história de origem preocupada em definir o indeterminável, com toques de patologia, niilismo e o conhecimento do estágio social periclitante em que vivemos.

O roteiro co-escrito por Phillips e Scott Silver (‘O Vencedor’) está ambientado no início dos anos 80, em uma Gotham não muito diferente da suja, violenta e decadente Nova York habitada por Travis Bickle (‘Taxi Driver’) e Rupert Pupkin (‘O Rei da Comédia’), ambas inspirações para compor Arthur Fleck: um ex-paciente psiquiátrico, aspirante à comediante stand-up e que preenche o tempo fazendo bicos como palhaço e cuidando da mãe enferma (Conroy, não se surpreenda caso a premiada atriz surja em bolões de aposta para o Oscar de Atriz Coadjuvante). Precisando ingerir sete medicações diariamente somente para ajudar a enfrentar os tais “tempos difíceis”, Arthur também convive com a risada incontrolável, uma doença neurológica que mal lhe permite chorar quando a situação assim requer, e apresenta óbvios sintomas de esquizofrenia, manifestados em uma percepção delirante da realidade (que permite criação de teorias a respeito dos eventos da narrativa). Em síntese, é uma vida miserável, ingrata, doída e que não lhe proporcionou nem um minuto de felicidade. “Eu só não quero me sentir tão mal”, suplica à assistente social que, a dias de estar desempregada devido ao corte do orçamento público e cuidando de tantos pacientes quanto as caixas espalhadas no escritório apertado, mal pode escutá-lo.

Entretanto, nós, por sermos cúmplices de Arthur, podemos. Pelo ponto de vista subjetivo da narrativa, o diretor Todd Phillips nitidamente simpatiza com as dores do protagonista e as provações enfrentadas, apesar de isto não significar chancelar ou ratificar seus atos e crimes mais cruéis. Humanizar é o mínimo que devemos ao nosso próximo, por mais monstruosos que sejam, e o maior acerto da direção está em visualizar com clareza a linha que separa um estudo de personagem enraizado na sociedade violenta de sempre do endeusamento do caos e desordem provocados pela tentativa de derrubar o sistema a força. Mais do que isto, seu mérito está em não cruzar esta linha, por mais tentador que isto pareça ser narrativamente. Assim, como o Sísifo da mitologia grega, Arthur empurra um peso sobre-humano por sobre o corpo esquálido, o reflexo físico de sua mente irreparavelmente trincada, até o cume da montanha – retratada simbolicamente pela escadaria que precisa subir até chegar em casa -, somente para este peso rolar de volta à base e o trabalho recomeçar. Esta sina é a mesma de bilhões; porém, a maneira com que o protagonista lida com isto, particular e doentia.

É porque, após ser agredido dentro do metrô por três ‘cidadãos do bem’ (homens brancos, ricos, machistas e empregados na maior empresa da cidade, a Wayne Enterprises), Arthur recorre ao ‘presente’ doado por um colega de trabalho e, acidentalmente, empurra a cidade em direção à luta de classes entre ricos, representados pelo bilionário e candidato a prefeito Thomas Wayne (um demagogo autodenominado “a única esperança”… do establishment mas não do povo), e pobres, a massa de cidadãos desamparados (com máscaras de palhaço e cartazes com o dito “Somos todos palhaços”). Dentro desta temática de nós contra eles, a exibição da satírica comédia pastelão ‘Tempos Modernos’ a uma plateia de endinheirados é o retrato ideal de como estes estão desvinculados dos anseios da população, retratados por Charlie Chaplin. Se riem de suas trapalhadas, embora não percebam seu contexto, é porque lhes falta a empatia pelo desafortunado, que poderia ser pisoteado nas ruas e não produzir comoção alguma, como Arthur destaca em certa passagem.

Sim, o roteiro de ‘Coringa’ não ajuda o personagem com sua crítica óbvia e repetida até ter seu impacto brevemente diluído. Note a diferença entre o instante em que tenta amaciar seu sapato de palhaço (apertado, como sinal de que não nasceu para o ofício), daquele em que está diante de seu ídolo, Murray Franklin (De Niro), vomitando seus rancores reprimidos. A primeira cena é sutil em revelar mais um fragmento da personalidade de Arthur, enquanto a segunda age como um anti-clímax, pois antecipávamos algo parecido, ainda que possamos apreciar a crítica contra a irresponsabilidade dos veículos de comunicação que, em troca de elevados índices de audiência, resolvem dar voz a quem apenas quer ver o circo pegar fogo. Essa previsibilidade retira do vilão sua característica mais fascinante, tal como a narrativa perde momento pela insistência em inserir fan service desnecessário (você saberá do que estou falando). A propósito, é decepcionante ver como a trama atribui a criação do Coringa a eventos provocados por terceiros ou situações acidentais, minimizando até certa extensão a responsabilidade de Arthur em ser quem é.

Ainda bem por Joaquin Phoenix, apto a reencontrar o foco do personagem quando a direção perde sentido. Sua construção é daquelas que os votantes da Academia gostam e premiam, e envolve uma transformação física (o ator perdeu cerca de 25 quilos) combinada com uma fanfarra psicológica. Igual aos sons ambientes mixados na trilha (as buzinas intermitentes por exemplo), podemos escutar a turbulência mental de Arthur, a partir de como Phoenix articula olhar, risadas (claro) e movimentação corporal, como o ato de arquear os ombros a frente em uma ‘dança’ aflitiva e incômoda. Phoenix também aproveita a oportunidade para homenagear o amigo falecido Heath Ledger, repetindo um momento icônico e que funciona como uma rima narrativa, ao pô-lo na posição de observador do mundo lá fora e.

Enquanto a trilha sonora de Hildur Guðnadóttir recria o efeito Hans Zimmer a partir do uso de sons desafinados e dissonantes, a fim de traduzir em música a psique do personagem, a fotografia de Lawrence Sher acentua o tom opressivo e marginal da periferia de Gotham e, no ponto de vista do personagem, mergulha-o em sombras em boa parte do tempo, até que venha encontrar a luz, signo de sua loucura, em momentos-chave.

“Minha vida não passa de uma comédia”, confessa o personagem-título. Uma piada de mau gosto, reflexo da sociedade egoísta habituada a erguer grades que separam os ‘sortudos’ dos ‘azarados’ e a debochar do sofrimento alheio, e ainda uma piada mortal, pois infelizmente os risos frenéticos ecoaram na cabeça de quem perdeu contato com a realidade após tanto escutá-los.

 

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