Destaques do primeiro dia da 43ª Mostra Internacional de Cinema

O primeiro dia da 43ª Mostra Internacional de Cinema viajou a países desconhecidos, como Laos, no Sudeste Asiático.

Fonte: Márcio Sallem - Correspondente especial JP

A arte cinematográfica, como vocês poderão confirmar no correr desta cobertura, é uma janela para que acessemos a mundos além da comodidade do círculo social em que estamos inseridos. É uma oportunidade ímpar para que conheçamos histórias que não chegariam a nós caso contrário, e, assim, estabeleçamos um grau de empatia cada vez mais condizente com a humanidade que alardeamos ter. Este primeiro dia da 43ª Mostra Internacional de Cinema viajou a países desconhecidos da maioria de nós, e a primeira parada foi em Laos.

Em competição de novos diretores, “O Século da Fumaça”, a estreia do belga Nicolas Graux, explora como o plantio do ópio, a monocultura que sustenta a comunidade de Pingchang, entorpece aqueles homens que parecem haver perdido o prazer de viver. Com um estilo de direção naturalista e liberdade para explorar o vilarejo, o cineasta investe seus planos longos, por exemplo, no retrato do vício de Laosan ou na reunião familiar em que o patriarca confere àquele a missão de se transformar no chefe da família. A cultura do povo e a forma como conciliam a rotina às dores de não serem mais jovens e não poderem mais modificar seus destino são os temas centrais da narrativa que, apesar de viajar ao interior da Ásia, nada mais é do que um retrato do difícil amadurecimento masculino em torno de suas obrigações.

Em contrapartida, as mulheres aceitam suas responsabilidades. Como Laosan comenta, “ao menos sua esposa não é cega ou aleijada e pode trabalhar os campos”, uma frase carregada de um machismo que o rapaz mal enxerga por estar enraizado em sua cultura. Não bastasse esta cuidar dos afazeres domésticos e da criação dos filhos, também realiza atividades produtivas, como a queima das plantações ou a colheita de milhos. Assim, o documentário revela-se como sendo uma viagem ao desconhecido, bem como também é um debate sobre uma família que é mais parecida com as nossas do que gostaríamos.

Já o drama central de “O Desejo de Ana”, também na competitiva de novos diretores, trata de um tema cascudo, o incesto, ao narrar o relacionamento entre os meio-irmãos Ana e Juan. Este, o estereótipo clássico do rebelde: piercing na orelha, moto envenenada, jaqueta de couro preta e a tendência de oferecer comidas proibidas ao sobrinho, Mateo. Ela, por outro lado, mais recatada, espiando um casal transando no prédio a frente e mantendo um romance sem paixão. A narrativa do diretor mexicano Emilio Santoyo não apresenta inovação no modo como, pouco a pouco, Ana começa a não resistir mais aos avanços de Juan, que guarda um segredo consigo para ser revelado no terceiro ato. De atrativo mesmo, apenas o jeito divertidamente moleque do garotinho Mateo.

Por falar em atrativo, o que chama atenção em “O Turista Suicida”, além da premissa curiosa, é a presença de Nikolaj Coster-Waldau, o Jaime Lannister de Game of Thrones, aqui interpretando um investigador de seguros com um tumor no cérebro e desejo de se suicidar. Não faltam momentos interessantes, como aquele em que o diretor dinamarquês Jonas Alexander Arnby concilia os sons incômodos da máquina de ressonância magnética com a percepção deturpada do protagonista. Aliás, se fosse calcar um elogio à narrativa seria dirigido à fotografia, apta a capturar, desde o céu nublado na cena introdutória até os instantes finais, o clima fúnebre ideal para ilustrar o que Max precisa investigar.

Meus problemas com a narrativa estão, porém, na forma como tenta, erradamente, utilizar o humor negro de forma errada, parecendo mais ofensivo do que divertido. Além disso, o roteiro começa a perder a mão à medida que a imaginação de Max começa a confundi-lo e, no processo, todos nós, a ponto de chegarmos ao desfecho insatisfatório para uma daquelas histórias que, estas sim, mereciam ganhar uma refilmagem. Quem sabe assim, a direção acertasse.

Pior mesmo somente o experiente cineasta francês Benoît Jacquot, que errou feio em “O Último Amor de Casanova”. Além da escalação equivocada do compatriota Vincent Lindon para interpretar o mais célebre libertino e conquistador italiano, a direção realizou aquele tipo de produção anacrônica e antiquada. Uma em que Casanova navega pelos braços das mulheres da despudorada alta classe londrina até terminar apaixonado pelo amor impossível de Marianne, cuja intenção permanece incerta ao seu olhar, mas não ao do espectador, que tem mais informações do que dispõe o protagonista.

Não existem mistérios a ser desvendados, culpa da estrutura da narrativa que inicia 30 anos após os eventos retratados, já nos momentos finais de Casanova, quando este trabalhava como bibliotecário. Também falta verossimilhança na paixão dele por Marianne, a ponto de não acreditarmos que as investidas malsucedidas do protagonista significassem a paixão avassaladora que a trama tenta vender. Na ausência disto, existe, em demasia, objetificação do corpo feminino e certa conivência do diretor com a personalidade reprovável de seu protagonista que, no final das contas, não tem nada que conquista nossa atenção.

Por quem eu me apaixonei para valer foi por este documentário “Honeyland”, vencedor no Festival de Sundance deste ano e aposta (quase) certa para disputar o Oscar da categoria em 2020. Sua protagonista é Hatidze, cuja dedicação à mãe idosa apenas é rivalizada com o modo como trata seu apiário, produzindo o melhor mel da região. Pobre, alimentado-se do mínimo que pode adquirir e com o luxo representado pela tintura capilar e o leque com que abana a mãe, Hatidze tem a rotina abalada com a chegada de uma família turca que, apesar de não agir de maneira maldosa, interfere decisivamente no meio onde a personagem está inserida.

A narrativa, portanto, acaba ganhando contornos de uma ‘concorrência’ entre aquela que é apta a conviver, harmoniosamente, com o meio ambiente e aquele que, na vã esperança de obter mais lucros, ameaça a sustentabilidade da região. É fácil perceber ecos desta obra da Macedônia no mundo contemporâneo, onde queremos riquezas abundantes, sem conferir a devida importância ao equilíbrio da fauna. É um documentário que implica, ainda, em questões maiores, como a indagação se não se trata de ficção, pois a dupla de diretores é bastante afortunada em registrar momentos capitais que enriquecem uma obra respeitosa e importante.

Conclui este meu primeiro dia com a dramatização da história real de como o funcionário do Senado Daniel Jones descobriu segredos chocantes sobre os métodos de interrogatório, digo, tortura praticados pela CIA depois do 11 de setembro, em um relatório (daí o título, “O Relatório”) explosivo que mexeu com as estruturas do poder em Washington. A produção norte-americana, dirigida por Scott Z. Burns e co-produzida por Steven Soderbergh, tem Adam Driver, Annette Benning, Jon Hamm e um grande elenco. Sobre esta, você confere minha opinião na crítica completa que publiquei no Cinema com Crítica.

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