Em outra ocasião, durante a cobertura do Festival de Gramado, comentei sobre a particular vocação da arte para refletir a respeito de problemáticas contemporâneas, e este terceiro dia de 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo proporcionou emoções intensas na maioria de suas histórias.
A mais importante talvez seja a de “Papicha”, o candidato da Argélia ao Oscar do próximo ano, livremente inspirada em fatos reais. Ambientado naquele país muçulmano africano em 1997, o roteiro conta a história da universitária Nedjma durante o período de transformação imposto pelos líderes radicais religiosos. Quem sofre com isto? Só as mulheres, compelidas a usar o hijab em vez das vestes ocidentais. Soa como uma ofensa direta à Nedjma, que tem como paixão a moda, rabiscando modelos em seu caderninho e comercializando suas peças em danceterias que frequenta a margem dos olhares proibitivos.
Sua situação piora à medida que as agressões terroristas no país indicam a aproximação dos tentáculos do fundamentalismo religioso, até que a violência bate a sua porte com a morte da irmã. A reação que Nedjma encontra é de organizar um desfile em homenagem a ela, um que também sirva como um instrumento de revolução particular contra o tolhimento da liberdade de ser quem é. A direção de Mounia Meddour pode não merecer os elogios pela falta de sutileza, mas acho que é um mero reflexo da brutalidade daqueles homens, em uma trama que está mais próxima de nós do que pensamos.
Outro que também discorre de um tema urgente é “Filhos da Dinamarca”, uma distopia não tão distópica assim que encontra o país escandinavo refém da ascensão de um partido nacionalista de extrema direita e anti-imigração como resultado de um atentado cometido no país. Enquanto este mexe com o sentimento do povo, ainda por cima inflamado pelo discurso de um político irresponsável e que ascende como um foguete em direção ao topo das pesquisas de intenção de voto, também provoca uma retaliação do grupo neonazista de onde deriva o título do filme. E, como diz o ditado, o olho por olho deixará todo mundo cego, um grupo muçulmano começa a se organizar para revidar as agressões e humilhações sofridas.
Uma das melhores sacadas desta produção está em sua estrutura narrativa, que revela quem é seu protagonista apenas com cerca de 45 minutos, empregando um recurso similar aquele visto em “Psicose” e que possibilita à direção efetuar uma análise comparativa de como funcionam os movimentos nacionalistas versus os da minoria. Se os crimes praticados por esta recaem sobre toda a comunidade muçulmana e demandam uma investigação rápida e conclusiva, aqueles cometidos pelos primeiros são imputados aos extremistas somente, com a lavada de mãos típica dos políticos de qualquer época. Além disto, a urgência crescente da narrativa destila a previsibilidade no desenrolar os eventos do terceiro ato, porque a reação da cobra acuada é apenas uma: o bote.
Pensaram que acabou? Nada disto, o documentário “O Que Não Mata” estabelece, a partir de uma história central de agressão central, diálogos com dezenas de mulheres (e homens) em uma espécie de escutatório / confessionário, em que revelam como (não) perceberam os atos preparatórios de seus agressores, o estupro propriamente dito e as consequências permanentes deste em suas vidas. Tenho minhas ressalvas com o formalismo narrativo, que consiste, meramente, na câmera sobre o tripé apontada para filmar os depoimentos daquelas pessoas corajosas. Ainda assim, é uma obra importante por dar voz a quem pensou tê-la perdido.
E, ainda que transversalmente, “Mr. Jones” também toca em temas contemporâneos, em particular, o medo que os governos totalitários tem da verdade, da transparência, do escrutínio. Aqui, a cineasta polonesa Agnieszka Holland retoma à década de 30, para narrar a história de Gareth Jones, um jornalista gaulês que enfrentou o regime socialista da União Soviética de Stalin, a fim de revelar ao mundo o Holodomor, que significa, em ucraniano, “deixar morrer de fome”. Tratou-se de um holocausto, por muitos desconhecido, em que milhões morreram de inanição diante das políticas socialistas (experimentos, chamam) implementadas por um regente conhecido por sua tirania.
Mais do que somente revelar o sofrimento de crianças devorando a carne de um irmão morto por não ter forma diferente de aliviar a fome, a narrativa aponta o dedo para os países ocidentais que, na esperança de manter parcerias comerciais, fechavam os olhos àquilo que o Sr. Jones do título ousou perquirir e que, anos depois, seria fonte de inspiração do escritor George Orwell no clássico A Revolução dos Bichos.
Assisti ainda a mais dois filmes neste dia. Um deles, “Banquete Coutinho”, homenageia um dos maiores cineastas brasileiros e nosso maior documentarista, Eduardo Coutinho, morto em 2014. O outro, “O Filme de Bruxo Aleixo”, apresenta-nos a um personagem animado bastante popular em Portugal, uma espécie de cão misturado com Ewok que tem um talk show no país. Aqui, ao lado dos amigos (um mais inusitado do que o outro), tenta bolar o argumento para um filme que produzirá.
Com mais estes 6 filmes, completo a marca de 17 em apenas 3 dias. E amanhã tem mais!