Hanseníase na baixada maranhense

Relato de uma realidade de valor social relevante para a história da Hanseníase no Maranhão.

Fonte: João Francisco Batalha

O preconceito contra Hanseníase, doença de pele infectocontagiosa de caráter crônico, é histórico, mas a enfermidade tem tratamento. A transmissão, de pessoa para pessoa, pode se dar através do beijo, das secreções das vias respiratórias (nariz e boca) ou de atos involuntários, como tosse e espirro.

A doença compromete a pele e os nervos, deixando feiosas sequelas nos seus portadores, cuja alteração biológica manifesta-se por um conjunto de sintomas perceptíveis.

Antigamente, os hansenianos eram discriminados: as autoridades exigiam o isolamento compulsório dos portadores da morfeia e o seu distanciamento da sociedade. A discriminação e o preconceito eram muito grandes e o estigma social identificava os detentores do adoecimento como leprosos.

O fato afetava os portadores da doença recomendando seu isolamento completo em colônias. Os mais aquinhoados na hierarquia social e favorecidos economicamente contavam com a discrição dos médicos e da família, que os mantinham no âmbito familiar envolto a segredos de pouco conhecimento público. Mesmo assim, existiam comentários sobre políticos e pessoas importantes ou influentes na governança e na sociedade local de serem portadores da morfeia. Comentários que se mantinham na sombra das evidências.

Segundo indicadores epidemiológicos da época, a maioria dos discriminados eram naturais moradores das zonas rurais.

No Maranhão, a doença se alastrava com relevância nos campos da Baixada, com elevada significância nos municípios de Monção, Penalva, Viana, Anajatuba, São Vicente de Ferrer, São Bento, Pinheiro e, também, nos vastos campos do Arari e povoado de Jaguari, em Vitória do Mearim.

Comentava-se que, no município de Arari, o principal foco da peste concentrava-se nos domínios do Curral da Igreja.

Conversas confusas identificavam o alto consumo de carne de porco, criados à solta em vastos campos e alimentando-se do peixe que era abundante nas lagoas e porções da região, como a causa do elevado índice da moléstia na Baixada Maranhense. Sabe-se, no entanto, que o acometimento da doença decorre do contágio pelo contanto íntimo e pelas condições inadequadas de higiene.

A vigilância sanitária, a partir do governo Getúlio Vargas, passou a tratar a afecção com mais eficácia e mandou construir na Ilha de São Luís, na Ponta do Bonfim, uma colônia de isolamento compulsório para o tratamento dos portadores do padecimento. Estabelecendo, também, medidas preventivas de higiene e profilaxia nas áreas mais atingidas pela pestilência, cuja alteração biológica manifesta-se por um conjunto de sintomas perceptíveis.

No Central do Bonfim do Arari, fixou residência e estabeleceu comércio um conhecido senhor, muito popular na região, que se tratara da enfermidade no leprosário de São Luís. No entanto, já curado da doença e havendo recebido alta e liberação médica, sua quitanda recebia restrição de visitas e de clientes em decorrência do seu proprietário ter sido um dos abrigados da Colônia do Bonfim, que ficava na capital do Estado.

Em meu livro, Manuil em Sais Justas (inédito), falo do encontro que o personagem teve com um grupo de leprosos fugitivos da Colônia do Bonfim. Os lazarentos se dirigiram a ele com pedidos de ajuda. Guardada a devida distância, o figurão notável da obra fez sua caridade.

Falo, também, de Peri, um lazarento culto e inteligente, orador bom de discurso que aparecia em Arari, periodicamente, montado em um jumento. Era natural de Rosário. Naquela época os hansenianos eram discriminados e as autoridades exigiam o seu isolamento e distanciamento compulsórios. Peri comparecia às festas, mas não entrava, mantinha-se afastado. Fazia suas alocuções à distância. A discriminação e o preconceito eram muito grandes e o estigma social os identificava, afetava e recomendava aos portadores da lepra o isolamento completo em colônias.

Em meu livro de memórias, Comigo Aconteceu, falo da Travessia do Bonfim (O Bonfim do Arari), onde, quando criança, me divertia com o rio e com o mergulhar das águas e a fúria da pororoca de ondas gigantes que enfrentei em pequenas e inseguras canoas movidas a remos laterais. No mesmo local, me deleitei com a movimentação dos currais de gado e comtemplei a beleza dos rebanhos de bovinos e equinos de meu pai e de meu avô, atravessando o Mearim a nado, nos períodos de mudanças de pastagens.

Até então, não existiam rodovias de trânsito rápido para o Arari e para a Baixada. O transporte de cargas e passageiros era lento e feito através de vapores, barcos, lanchas, batelões, igarités e canoas pelos rios Mearim, Pindaré e Maracú, que faziam a integração da Baixada Ocidental Maranhense. Com travessia de rio, obrigatória, no Bonfim do Arari, trafegavam todos que viajavam de Arari para Viana, Penalva e Baixada Ocidental. Também, trajetória de pescadores de Anajatuba que iam fazer salgas no lago do Parnauaçú. Era divertido apreciar grande quantidade de aventureiros atravessando o rio com seus animais e enormes estoques de peixes secos.

A travessia de rio entre o Bonfim do Arari e o Campo das Folhas era roteiro de fugitivos da penitenciária de Alcântara, passagem de ciganos, andarilhos, desertores e rota de leprosos em fuga da Colônia do Bonfim. Pessoas feridas e mutiladas nas mãos, nos pés, nos olhos, nas orelhas e no rosto.

Existem, neste relato, dois Bonfim: Bonfim, até então vila do município de Arari; e Bonfim, colônia de portadores de Hanseníase, situados à margem esquerda da foz do rio Bacanga, área do Itaqui, na ilha de São Luis. Este último era, infelizmente, local de isolamento como forma de afastar os hansenianos do convívio social.

Atualmente, visito os dois Bonfim sem padrão regular. O Bonfim do Arari, para matar saudade; o Bonfim ex-colônia de leprosos, quando vou à creche Escola Nossa Senhora das Graças que, mantida pela Maçonaria cuida da educação e nutrição de crianças da Vila Esperança, filhos e descendentes de hansenianos. Instituição que conta com a companhia e acompanhamento espiritual de Dom Xavier Gilles de Maupeou d’Ableiges, ex-bispo de Viana.

Sobre o assunto existiram até histórias cômicas, como a de um comerciante de Tecidos, Secos & Molhados do Bonfim do Arari, que, ao se identificar a uma bonita mulher, atraente cortesã da ZBM de São Luis, como residente no Bonfim, fora expulso do local aos gritos, sob a interpretação de que se tratava de um fugitivo da Colônia do Bonfim. E outras, creditadas à sagacidade do empresário Bento Mendes, de Penalva.

As passagens de travessia no rio Mearim, no Bonfim do Arari, eram pagas. Os atravessadores tradicionais da época eram Libânio da Silva, que no passado fora rico fazendeiro de gado, mas, perdulário, perdera tudo o que tinha; e o genro Jesus Garros e seus filhos. Antes destes, a tarefa de atravessador era mantida por Zé Moreno, um mulato natural de Anajatuba.  Era no Bonfim que as seleções de jogadores de futebol de Viana e Penalva atravessavam o Mearim, quando vinham a pé ou a cavalo jogar em Arari. Era, também, trajeto de quem ia para o Cajari.

As bandas de música do Barro Vermelho atravessavam o rio nesse lugar quando vinham tocar nas festas do Arari. Itinerário, também, das manadas do Barão de Itapary, quando em transumância.

Dos zíngaros mantínhamos certa distância, por desconfiança. Já dos leprosos, por precaução, não nos aproximávamos de jeito nenhum. O medo era tão grande que fechávamos as portas das casas, tanto para ciganos, quanto para os leprosos, e os observávamos à distância. Destes últimos, não tocávamos as mãos nem os utensílios. Ao ofertarmos alguma dádiva (água, leite, comida, ou outros objetos), deixávamos à distância e em recipientes descartáveis.

Mutilados, eram vítimas do preconceito e discriminados. O velho Libânio da Silva, de salutar sabedoria e observador do tempo, era a única pessoa que se prestava a atravessá-los em sua canoa, mas, mesmo assim, estes não podiam se sentar nos bancos do seu pequeno barco de travessia, que, antes, era totalmente forrado com palhas de babaçu secas, as quais eram levadas à fogueira e incineradas após a execução do trabalho. A canoa, posteriormente desinfetada com creolina, passava de três a quatro dias exposta ao sol, sem que ninguém dela se aproximasse. Fatos que vivenciei na minha infância e adolescência na Tresidela do Bonfim do Arari, onde nasci e vivi até os treze anos de idade.

Era grande o número de fugitivos que faziam essa travessia e seguiam destino, geralmente, para municípios da Baixada: Cajari, Matinha, São João Batista, Cajapió e aqueles já citados, entre outros. Fugiam da colônia onde faziam tratamento.

As lanchas e os barcos não os transportavam por preconceito e medo de que a doença contagiasse outros passageiros e a própria tripulação.

Em São Bento, na transição da primeira para a segunda década do século passado, foi fundado um hospício destinado aos portadores da moléstia. Ao ser fechado o albergue, em 1947/48, os empresários donos das embarcações que faziam o transporte de cargas e passageiros para aquela região se recusaram a transportar os remanescentes hansenianos que tiveram de ser transferidos para o nosocômio da ponta do Bonfim. Para tanto, as autoridades tiveram que improvisar o transporte necessário em igarités próprias, rebocadas em lanchas motorizadas. Relatos que nos foi confirmado pelo escritor e historiador Vavá Melo, da Academia Sambentuense de Letras, e pelo vianense Raimundo Benedito Aires, do Instituto Histórico da Maçonaria Maranhense.

Entre os séculos XIX e XX, Raimundo Nina Rodrigues, médico e patologista nascido em Vargem Grande, com o conhecimento que possuía sobre a doença, tratou do assunto com competência e destemor e fez publicações na revista médica Gazeta da Bahia, entre as quais estava “A Morfeia em Anajatuba”, de 1886. O governador Aquiles Lisboa, médico e cientista, natural de Cururupu, deu ênfase à campanha contra a hanseníase do Maranhão. O Dr. Claudio de Moraes Rego, nascido em Pedreiras, um dos dedicados médicos que fizeram parte da história do Maranhão, fazia constantes viagens ao Arari acompanhando o quadro dos portadores da doença no município. Tonico Santos, arariense hoje nos seus 100 anos de idade, dono de Ambulatório Médico e Farmácia em Arari e prestigioso assistente da população local no ramo da medicina, mantinha com o Dr. Claudio o mapa da evolução ou involução da doença no município. Junto a essas autoridades, outra profissional que muito contribuiu no trabalho de mapeamento, facilitando a tramitação documental de processos foi a arariense Maria da Conceição Fernandes (Dadá), filha do Comandante de lanchas Antônio Feliciano Fernandes. Ela trabalhava no Serviço Nacional de Lepra, em São Luís.

Quando cheguei para estudar em Vitória do Mearim, em 1958, existia um terreno no espaço mais valorizado da cidade, na Praça Rio Branco, isolado por cercas de tábuas. Ninguém podia adentrá-lo ou se aproximar dele, apesar de ser uma área de muitas árvores frutíferas, entre as quais, manga-rosa e carambola, que amadurecidas apodreciam no chão por escrúpulo dos seus habitantes que não as consumiam, apesar da beleza das frutas. O motivo para tal: naquele terreno teria morado uma senhora da sociedade local que fora portadora da morfeia. Também de Vitória do Mearim foi conhecida outra figura importante da sociedade local que contraiu a doença e procurou recursos abrigando-se na Colônia do Bonfim, da qual chegou a ser o prefeito. Curado e tendo recebido alta médica, foi morar, primeiro na Fazenda Nova e posteriormente no Andirobal dos Crentes (hoje, Pio XII), mas encontrou dificuldade corporativa nos dois lugares devido ao preconceito e à discriminação da população daqueles então povoados. Em Arari, do mesmo modo, nas adjacências em que hoje é edificada a Câmara Municipal, foi desvalorizada uma área residencial em razão de haver residido uma determinada figura da sociedade local com sintomas de acometimento do mal. Em seu livro, A esfinge do Grajaú, meu patrono na Academia Ludovicense de Letras, João Dunshee de Abranches Moura, narra seu encontro com hansenianos no percurso que fizera a cavalo, entre Pedreiras e Barra do Corda, em agosto de 1888, carregando nos alforjes provisão para cinco dias de viagem. Relata a miséria física dos banidos da sociedade e diz: “A certa altura, lamentos surdos saíram da mata; e o guia explicou logo que, ali dentro, existia uma Colônia de Morféticos, por eles mesmos organizada, uma vez que os poderes públicos os baniam das vilas e cidades sem lhes proporcionar um amparo. A princípio, acoutaram-se ali uns cinco ou seis; depois foram vindo outros; e, segundo parecia, já eram numerosos. Não deixavam entrar pessoa alguma nesse seu horrendo valhacouto. Corridos de vergonha diante da monstruosidade do seu mal incurável, suplicavam lá de dentro comida, roupas e fumo aos viajantes, pois que o dinheiro para nada lhes servia. Deixamos em dois grandes cofos postos à beira do caminho algumas peças de vestuário e toda a comida que trazíamos.”

Durante minha passagem por dois anos na cidade de Grajaú, através da Maçonaria e do Lions Clube Internacional, visitei e dei minha singela colaboração à colônia da Vila San Marino, destinada à assistência e cura dos hansenianos com deformidade, na qual o médico capuchinho italiano, Frei Alberto Beretta, pessoa humana, humilde, envolvente, religioso dotado de amor, fé cristã e genuíno espírito de caridade, prestava socorro médico com dedicação, afabilidade e carinho.

Não obstante a diminuição de casos de hanseníase no Maranhão, até a primeira década do século XXI o Estado ainda era o segundo do país no rol de identificação de lepra. Lamentavelmente, pelos relatos que ouvimos, a proporção voltou a subir e nos anos recentes passamos a liderar a taxa de identificação de novas ocorrências, como Estado com maior número de casos novos em menores de 15 anos de idade no Brasil.

Para nosso gáudio, o médico arariense José Leonardo Bastos Júnior, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Arari, vem demonstrando preocupação com o elevado quadro da doença nos municípios de Arari, Vitória e da Baixada, dedicando-se com determinação ao estudo e buscando explicações da origem das causas de tão crescente índice em nossa região. Em sua luta incessante e seu trabalho sigiloso, o obstinado médico, no cumprimento de sua missão social e respeito voltado para os valores humanos, demonstra preocupação com o elevado quadro da doença em nosso Estado. Alerta as entidades e procura sensibilizar autoridades ao enfrentamento da moléstia. Dedica-se com determinação ao estudo, buscando explicações da origem das causas de tão crescente listagem em nossas plagas. Mobiliza forças para enfrentar a doença. Promove e faz palestras, reuniões e lives, no sentido de conscientizar as autoridades locais e a população de Arari e Vitória do Mearim, orientando-as sobre os sintomas da patologia e alertando acerca do  perigo e consequências da enfermidade que se manifesta, principalmente, na camada dos mais jovens, de idade próxima aos 15 anos, nos dois municípios. Neste trabalho, estão envolvidos o Instituto Histórico e Geográfico de Arari, a Academia Arariense de Letras, Artes e Ciências, a Câmara Municipal, as Secretarias de Saúde e de Educação do município e as lideranças religiosas das igrejas católica e evangélica de Arari, e Secretaria de Saúde de Vitória do Mearim.

Paralelo a essa frente de trabalho, outra enfermidade de grande evidência a qual o incansável médico arariense se dedica com empenho e afinco pelo seu tratamento: as doenças oncológicas de câncer de pele, de elevada proporção em nossa terra.

SLZ/MA 12/02/2023.

João Francisco Batalha é ex-presidente da Federação das Academias de Letras do Maranhão – FALMA –  e seu atual Vice-presidente. Secretário Geral da Academia Ludovicense de Letras e Primeiro Secretário da Academia Maçônica Maranhnse de Letras. Gestor de RH e Administrador Público. Economiário, foi gerente de 6 agências da Caixa Econômica Federal. Pertence a 14 confrarias, cinco destas são maçônicas. Jornalista registrado na DRT-MA e associado à ABI – Associação Brasileira de Imprensa é articulista com participação em diversas instituições culturais e Coletâneas. Tem vários  livros publicados. Filiado à ADESG e Doutor em Filosofia Univérsica P.h. I, Filósofo Imortal, foi o escritor homenageado do ano 2018, pelo Movimento Nacional Elos Literários, em Salvador/BA. Ainda em 2018, recebeu a Medalha do Mérito FALMA. Foi o homenageado do ano pela ALAC e I Bienal de Arari; e Personalidade do ano, de Paço do Lumiar, pela Academia Luminense de Letras. Em 2020, em Salvador/BA, recebeu a Medalha Senhor da Literatura, concessão do Movimento Nacional Elos Literários. Coleciona mais de uma dezena de Comendas, Medalhas e Diplomas de Honrarias.

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