Há 82 anos, Lampião e Maria Bonita foram mortos e decapitados no sertão sergipano

Bandido para uns, justiceiro para outros, o Rei do Cangaço foi considerado a figura mais procurada pela polícia daquela época

Fonte: Redação/Aventura na História

Nascido em uma data de muitas controvérsias, mas datado oficialmente na certidão de batismo no dia 4 de junho de 1898, Virgulino Ferreira da Silva é natural de Serra Talhada, interior do pernambuco, e até hoje é lembrado como o lendário Lampião, o Rei do Cangaço.

A partir de  1922, um bando de cangaceiros começou a saquear fazendas e extorquir comerciantes da região. Bandido inescrupuloso para uns e um justiceiro heroico para outros, Lampião, o líder, passou a ser considerado a figura mais procurada pela polícia daquela época.

Em 1930, conheceu Maria Déia, a Maria Bonita, que ingressou no bando. Virou sua mulher, cúmplice, alma gêmea. Dessa união, nasceu Expedita Ferreira. Lampião plantou sua semente na terra. Como de costume no cangaço, foi necessário decidir o destino da criança, e como não se queria que a menina crescesse na bandidagem, ela foi entregue a um aliado para que ela tivesse como tutor o tio, João Ferreira. Isso tudo ocorreu no sigilo e o caso foi tratado como uma espécie de Segredo de Estado.

Tido como arrogante, muitas vezes egocêntrico, Lampião sonhava em ser governador. Entre seus projetos, um novo estado sertanejo alternativo, formado pelas regiões que tinha mais influência, com porções dos estados da Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe.

Profundamente religioso e supersticioso, católico praticante do clássico sertanejo, relacionado às forças da natureza, Lampião respeitava inevitavelmente os padres, principalmente Padim Ciço, que considerava seu padroeiro. Todo meio-dia, parava para rezar e praticava jejum de sexta-feira. No centro de sua fé, estava a proposição de que seu corpo estava fechado contra o mal.

Da esquerda para direita: 1- Vila Nova 2- ? 3- Benjamin 4- Luis Pedro 5- Amoroso 6- Lampião 7- Cacheado 8- Maria Bonita 9- ? 10- Quinta-feira (Foto: Wikimedia Commons / foto tirada por cangaceiro Juriti)

Em uma reportagem do jornal O Ceará em 1926, um repórter descreveu o Rei do Cangaço em sua passagem por Juazeiro do Norte. Segundo o relato, Lampião era magro de pele escura, com cabelos fartos e pretos, chapéu de feltro, sem enfeites, e alpargatas de couro, do tipo vaqueiro. Usava um lenço verde no pescoço, com um anel segurando. Além desse, mais seis anéis pelas mãos, com pedras preciosas, além de um rifle, uma pistola e um punhal.

Era muito comum no cangaço noites de bebedeira e diversão. Porém, Lampião não era muito afeito ao consumo de álcool, apesar de gostar particularmente do conhaque. Mesmo assim, não bebia muito.

Numa situação em que os banhos eram uma raridade, Lampião usava perfumes de boa qualidade e em grandes quantidades. Gostava de roubar perfumes caros e importados nas capitais, que juntava com o cheiro de suor e da brilhantina usada no cabelo, criando uma mistura de cheiros única e que virou uma marca do cangaço. Há relatos de banhos de perfume generalizados, que chegavam até nos animais de tração para melhorar o cheiro do bando.

Para muitos volantes e policiais, Lampião genuinamente possuía superpoderes, pois era inconcebível a forma como ele conseguia fugir e deixar nenhum rastro de sua presença. Porém, o segredo do Rei do Cangaço era a estratégia, a forma como comandava o bando em ação. Apagava evidências de sua presença, como apagamento de pegadas e até andava com os calçados de trás para frente para confundir os perseguidores.

Bando de Lampião de divertindo Foto: Benjamin Abraão Botto)

Captura e Morte

Lampião começou a ser caçado pela polícia depois de saquear fazendas do sertão, surgindo como ameaça ao domínio dos coronéis fazendeiros. Ele e grande parte de seu bando morreram na Grota de Angicos, no sertão sergipano, depois que uma força volante descobriu onde eles estavam acampados.

No dia 28 de julho de 1938, o dia estava começando. Os cangaceiros acordavam, o cheiro de café pairava no ar. De repente, enquanto segurava uma bacia em suas mãos, Maria Bonita foi atingida por uma bala no abdômen.

Caída no chão, agonizando, viu Lampião tomar um tiro, e um soldado degolar o seu marido para, em seguida, ter o mesmo fim. Seu corpo, no entanto, teve outro destino. Enquanto as cabeças dos onze cangaceiros — incluindo a dela — foram depois expostas ao público para servir de exemplo, o corpo de Maria Bonita foi abandonado na mata.

Cabeças de Lampião (última de baixo), Maria Bonita (logo acima de Lampião) e outros cangaceiros do bando (Foto: Reprodução de ‘Ciclo do Cangaço: Memórias da Bahia’, de José Castro/Wikipedia)

Foi aí, depois de sua morte, que Maria de Déa recebeu outro apelido. Seu nome, que antes era em referência à sua mãe, chamada Déa, passou a ser outro. Nasceu, então, Maria Bonita.

Quem matou Lampião?

As dúvidas sobre a narrativa do óbito de uma das figuras mais controversas da História do Brasil chegaram a um provável fim com a confissão de um oficial.

Na versão oficial, consta que, em 28 de julho de 1938, em meio a Grota de Angico, em Sergipe, Lampião morreu de um tiro disparado por um dos guarda-costas de Francisco Ferreira, o oficial Antonio Honorato da Silva. Mas essa constatação não preenche algumas lacunas na história da morte de Virgulino Ferreira da Silva, e levanta ainda mais dúvidas sobre o que aconteceu no momento final do maior cangaceiro do sertão brasileiro.

Frederico Pernambucano de Mello, jornalista e historiador, não acreditava fielmente nesse ponto de vista. Considerado o maior especialista em cangaço no Brasil e biógrafo de Lampião, o pesquisador dedicou-se a colocar um fim nas dúvidas geradas pela incompleta narrativa da emboscada que vitimou o Rei do Cangaço.

“Nesse relato de Honorato, encontrei algumas inconsistências. Ele afirmava que Lampião tinha um pavor enorme no rosto quando atirou, que deu o primeiro tiro e acompanhou a queda. Coisas que não faziam muito sentido”, disse o especialista. 

Em seu livro, Apagando o Lampião – Vida e morte do Rei do Cangaço, Mello afirma que o assasino é outro. Também guarda-costas de Francisco Ferreira, — no entanto, não Antonio Honorato, como se acreditava anteriormente, conforme foi divulgado pela imprensa local na época. O responsável tiro fatal foiSebastião Vieira Sandes.

“Sandes foi coiteiro [pessoas que ajudavam os cangaceiros, dando-lhes abrigo, comida e informações] de Lampião na região de Alagoas e companheiro de costura dele. Lampião era um exímio costureiro de couro, de pano, bordava”, explica o historiador. Os dois chegaram até mesmo a ser amigos. 

A descoberta da verdadeira autoria do assassinato foi, na verdade, uma espécie de confissão. O soldado descobriu, em 2003, um aneurisma tão crítico que o deixava sem condições de operar. Foi assim que ele decidiu contar ao escritor a sua versão do evento que aconteceu em 1938. “Fiquei até emocionado. Fazia mais de 20 anos que estava atrás dele. Minha mulher achou, na ocasião, que era uma emboscada. Ele me deu um relato precioso, que gravei durante quatro dias. Morreu um mês depois”, relembra Mello.

De acordo com o depoimento do oficial,  Lampião morreu com um tiro só de fuzil, disparado a oito metros dele, porque o atirador não estava atuando no combate, mas observando à distância.

Sebastião Vieira Sandes e Frederico Pernambucano de Mello (Foto: Acervo Pessoal)

“Lampião foi surpreendido, pois esperava ser atacado por terra e não pelo rio, como aconteceu. Sandes me disse que o silêncio era de uma catedral, porque era começo da manhã. Havia chovido e até os animais estavam recolhidos. A maneira como atirou, de cima para baixo, ao contrário do que afirmava Honorato, foi comprovada pela perícia feita recentemente pelo perito criminal federal Eduardo Makoto Sato, do Instituto Nacional de Criminalística. O punhal de Lampião, que foi atingido, nunca havia sido analisado”.

Sandes não quis declarar que havia assassinado Lampião na época porque tinha receio do que poderia acontecer com ele, visto que Virgulino era um dos homens mais poderosos no sertão na época. Aos seus poucos 22 anos, ele foi aconselhado a não assumir autoria. Depois de aparecer na capa da revista Fatos & Fotos, Antonio Honorato foi encontrado morto. Ele se gabava por ter “apagado” o famoso cangaceiro.

O livro Lampião e Maria Bonita: Uma história de amor e balas, de Wagner Barreira, detalha a insólita exposição da cabeça dos cangaceiros após a execução. Confira um trecho.

“Uma a uma, os soldados retiram as onze cabeças das latas de querosene. Ajeitadas em forma de pirâmide invertida nos quatro degraus da prefeitura de Piranhas, interior de Alagoas, elas fedem, pingam uma mistura de álcool, salmoura e fluidos humanos. Lampião ocupa o centro do primeiro degrau, a pele morta e encharcada puxa olhos, bochechas e boca para baixo, como se escorressem pelas laterais do crânio. Há marca de bala no rosto, as orelhas estão desalinhadas. Os tecidos não parecem colados ao osso.”

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