Tio e sobrinho criam “banca solidária” para doar alimentos a quem não tem como comprar

Comerciantes decidiram tirar do próprio bolso para adquirir produtos alimentícios e distribuir a quem pedia ajuda.

Fonte: Luciene Vieira

A pandemia do novo coronavírus provocou uma reviravolta sem precedentes na economia do planeta inteiro, atingindo em cheio a camada mais pobre da sociedade, deixando muitas pessoas sem ter nem mesmo condições de comprar o básico para garantir a alimentação de suas famílias. E foi a fome provocada pela Covid-19, ao deixar muitos pais e mães sem ter como trabalhar, que motivou os comerciantes Cláudio Paco, de 30 anos; e Marcos Vilela, 20, tio e sobrinho, a ter uma reação de solidariedade que não espera por ações governamentais.

Marcos Vilela, ao lado da “banca solidária”, com o sorriso de quem está de bem com a vida por ajudar ao próximo (Foto: Gilson Ferreira)

Marcos e Cláudio são naturais de Apicum-Açu – na Baixada Maranhense, moram no Parque Vitória, em São José de Ribamar; e, em outubro de 2019, abriram a loja Empório Camarão, na Avenida Principal, ou Rua 4.000, do mesmo bairro no qual residem. Desde o dia 31 de março de 2021, tio e sobrinho estão dando comida aos mais necessitados. Na porta do pequeno comércio, há uma banca repleta de itens de mercearia, e um cartaz com os dizeres: “Caso você esteja precisando de alimentos, e não tenha como comprar, fique à vontade para pegar. E, se você quiser doar, sinta-se à vontade”.

Marcos e Cláudio, que não dependem do Estado ou Município, representam, hoje, o único salva-vidas para muitas famílias (as mais) impactadas pela pandemia do novo coronavírus, na região metropolitana de São Luís. São 116,8 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no Brasil, segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), que reúne pesquisadores e professores ligados à insegurança alimentar.

Na manhã de ontem, a cabeleireira Emília Ribeiro foi beneficiada pela solidariedade dos comerciantes (Foto: Gilson Ferreira)

A pandemia deixou ainda 19 milhões com fome no ano passado, atingindo 9% da população brasileira, a maior taxa desde 2004, há 17 anos, quando essa parcela tinha alcançado 9,5%. E quando o dobro do que havia em 2018, quando o IBGE identificou 10,3 milhões de brasileiros nessa situação. Houve crescimento de 27,6% ao ano entre 2018 e 2020. Entre 2013 e 2018, o crescimento era de 8% ao ano. O Brasil chegou ao final do ano passado com 19 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave.

COMO TUDO COMEÇOU

No Maranhão, espantosamente, “nenhum” indicador social foi localizado a fim de subsidiar esta matéria com dados referentes à insegurança alimentar da população maranhense. Mas o “termômetro” para que os comerciantes Marcos e Cláudio iniciassem as doações de alimentos foi o retrato da fome observado no rosto de homens, mulheres e crianças que, corriqueiramente, procuravam ajuda no Empório Camarão.

“Estava frequente a vinda de pessoas pedindo ajuda, com argumento de que não tinham nada para comer. A situação se repetiu por tantas vezes que, na quarta-feira do mês passado (dia 31), isto é, há uma semana, eu e meu tio tiramos do nosso bolso algum dinheiro e fomos ao supermercado comprar alimentos destinados à doação”, informou Marcos.

A dupla de tio e sobrinho é conhecida no Parque Vitória pela venda de camarões, trazidos do município de Apicum-Açu. A banca de madeira que hoje serve para expor os alimentos ofertados aos mais carentes já existia no mesmo lugar que está atualmente, na calçada do mercado, mas antes tinha nela o marisco à venda. “São duas bancas, uma continua com nosso camarão à venda, e a outra com os itens da mercearia para doação”, explicou Marcos.

Vale informar que o Empório Camarão não vende arroz, feijão, leite, óleo e todos os demais itens alimentícios essenciais. O estabelecimento comercializa produtos naturais, como molho de pimenta caseiro, camarão, temperos secos fabricados de forma artesanal, óleos vegetais, castanhas, amendoim, farinha, mel e doces. É com a vendas dessas mercadorias que os comerciantes mantêm o mercado aberto, cujo espaço é alugado. Portanto, para a ação solidária, como Marcos informou, foi feito um investimento à parte.

Ontem (7), fazia uma semana do começo da iniciativa, e Marcos informou que já tinha recebido doações de diversas pessoas para que o projeto seja mantido, apesar de a banca solidária não ter prazo para acabar. “Há pessoas que nem conheço que surgem aqui com alimentos para serem doados. Elas ficaram sabendo da nossa ação por meio das redes sociais”, informou Marcos.

Foi também por meio de uma divulgação no Instagram @sensacionalistaslz que o Jornal Pequeno, por conta própria, investigou a veracidade da informação, e, ao constatar que de fato existia a “banca solidária” no Empório Camarão, pesquisou o endereço do estabelecimento comercial, chegando assim até Marcos Vilela. O Cláudio Paco, na manhã de ontem, estava viajando, conforme informou Marcos.

O PERFIL DE QUEM TEM FOME

O perfil de quem tem fome é quase sempre o mesmo: desempregados ou pessoas que vivem da informalidade, mas que ficaram sem poder trabalhar devido às medidas restritivas impostas pela pandemia. E, como o auxílio emergencial estava suspenso, a fome do maranhense teria aumentado.

Emília Ribeiro, de 58 anos, que fechou seu salão de beleza ainda em 2020, e passou por uma cirurgia de histerectomia (operação cirúrgica na remoção do útero), mora em uma invasão (desde 2007), a Terra Livre, vizinha ao Parque Vitória, com o seu marido e sua neta de cinco anos. “Financeiramente fui atingida pela pandemia do novo coronavírus. Também, como eu estava ano passado em processo de recuperação da cirurgia, tive que me conformar com o fechamento do salão”, informou a cabeleireira.

Emília chegou ao Empório Camarão perguntando: “Posso pegar o que preciso?”. Marcos, que prontamente pegou uma sacola para auxiliá-la, respondeu: “Pode, claro”. Emília levou para sua casa pacote de biscoito, leite em pó, de café, feijão, macarrão instantâneo, arroz; e, ainda, como cortesia de Marcos, ovos que estão para venda, contribuindo com a proteína nas refeições da casa da cabeleireira.

“Obrigada, estou muito agradecida. Graças a Deus, você me ajudou (se referindo a Marcos). Minha dispensa está vazia. Meu marido é servidor público, ele tem um emprego de escriturário em uma secretaria municipal de São Luís. Ele recebe o salário a cada 30 dias, então, quem mantinha as despesas no decorrer das semanas era eu, com o salão de beleza. É difícil chegar ao final do mês com dinheiro ou mantimentos. Tudo acaba logo”, desabafou Emília.

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