Fatia do Orçamento definida pelo Congresso no Brasil é 9 vezes maior que nos EUA

Um quinto de todos os recursos livres do governo federal neste ano foi definido por deputados e senadores

Fonte: Da redação com informações de O Globo

O poder dos deputados e senadores sobre os gastos públicos está novamente em ascensão. Mesmo com o veto do presidente Lula de R$ 5,6 bilhões em emendas parlamentares, os parlamentares destinaram um quinto de todos os recursos livres do Orçamento da União para 2024 para suas escolhas.

As verbas livres, voltadas principalmente para investimentos e custeio da máquina pública, representam uma parcela sobre a qual o poder público pode decidir livremente sua destinação. O percentual sob controle do Congresso, que ganhou destaque a partir de 2020, estava em queda, mas os números do Orçamento indicam que voltou a subir neste ano, atingindo 20%.

Quando consideramos apenas os investimentos, como obras, os parlamentares são responsáveis por escolher 27% dos valores disponibilizados para essa rubrica no Orçamento de 2024.

Apesar das despesas totais do governo alcançarem R$ 5,4 trilhões, uma grande parte é destinada ao manejo da elevada dívida pública brasileira. Os gastos federais somam R$ 2,1 trilhões, e há poder de escolha para menos de um décimo desse montante.

As despesas discricionárias, que não são obrigatórias, como salários e Previdência, representam R$ 222 bilhões. Essas verbas são destinadas a investimentos, políticas públicas e custeio da máquina estatal. No entanto, parlamentares voltaram a avançar sobre elas no primeiro Orçamento proposto por Lula.

Esse cenário dificulta a coordenação de programas públicos, a prestação de serviços de qualidade para a população e amplia as dificuldades do governo para cumprir a meta de déficit fiscal zero este ano, prevista no novo arcabouço fiscal.

Em 2023, o apetite do Congresso por emendas havia diminuído, representando 17,46% dos gastos livres. Neste ano, o percentual subiu para pouco mais de 20%, mesmo com o veto parcial de Lula.

O nível de ingerência do Congresso brasileiro sobre os gastos públicos é singular no mundo. Além de dificultar o equilíbrio fiscal, afasta os gastos federais das políticas prioritárias definidas pelos ministérios, reduzindo a transparência e a fiscalização da aplicação dos impostos arrecadados.

Os congressistas podem destinar recursos da União por meio de emendas ao Orçamento, que ultrapassaram R$ 50 bilhões na peça deste ano. O montante foi reduzido para R$ 44,6 bilhões após o veto de Lula, que desagradou aos parlamentares. Desse total, R$ 25 bilhões serão aplicados de acordo com emendas individuais de deputados e senadores.

Existem também outros dois tipos de emendas parlamentares. As de bancadas dos estados definiram outros R$ 11,3 bilhões, e as de comissões parlamentares da Câmara, do Senado e mistas indicaram o destino de R$ 11 bilhões.

Um detalhe que complica ainda mais a situação é que o governo é obrigado a executar as emendas individuais e de bancada, reduzindo ainda mais a margem de manobra para equilibrar receitas e despesas. Para 2024, o Congresso até criou um calendário de pagamentos dessas emendas obrigatórias, que também foi vetado por Lula.

Hélio Tollini, especialista em contas públicas, alerta que as emendas estão ocupando um espaço desproporcional nos gastos federais, tornando-se uma peculiaridade negativa do Brasil. Ele destaca que esse processo não encontra paralelo no mundo, especialmente nos países da OCDE, onde a iniciativa de emendas individuais é considerada uma exceção.

Um estudo do economista Marcos Mendes, realizado em 2022, mostrou como o Brasil destoa dos países da OCDE. De 29 nações analisadas, somente EUA, Eslováquia e Estônia aparecem acima da marca de 2% de recursos livres definidos por congressistas. No Brasil, esse percentual foi ainda maior em 2022, atingindo 24,6%.

Enquanto em outros países a dinâmica das relações entre Executivo e Congresso pouco se alterou nos últimos anos, no Brasil a fatia apropriada por emendas deu um salto a partir de 2020.

O estudo de Mendes destaca ainda o elevado número de emendas no processo orçamentário brasileiro, o alto valor envolvido e o fato de a proposta do Orçamento já sair do Executivo com uma reserva para os parlamentares. Dessa forma, deputados e senadores não têm o ônus de cortar outros gastos para alocar recursos escolhidos por eles. O problema é que eles estão ampliando cada vez mais essa fatia.

Juliana Inhasz, professora de economia do Insper, destaca que, no final das contas, a sociedade acaba pagando o preço dessa ineficiente alocação de recursos. Ela ressalta que esse conflito gera dificuldades na implementação eficaz de programas públicos e na prestação de serviços essenciais à população.

Sem condições de barrar a voracidade do Legislativo, o governo tenta canalizar parte dos recursos das emendas para obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A infraestrutura é uma das poucas áreas em que se aproximam as prioridades do governo e as dos parlamentares, interessados em apadrinhar obras em ano eleitoral.

Hélio Tollini chama atenção ainda para o crescimento das chamadas “emendas Pix”, modalidade criada em 2019 na qual o parlamentar destina recursos diretamente para prefeituras, sem necessidade de definir projetos. Essas emendas chegam a R$ 8,2 bilhões em 2024, o maior valor desde a sua criação.

Ele destaca que as “emendas Pix” representam a negação da transparência, uma vez que o dinheiro é enviado para o estado ou município sem a necessidade de especificar o destino. Isso também dificulta auditorias sobre como o dinheiro foi utilizado.

Raul Velloso, especialista em contas públicas, destaca que o Orçamento muito engessado dificulta o cumprimento da meta de zerar o déficit público neste ano, definida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Ele enfatiza que solucionar essas questões exigirá abordar o problema do excesso de gastos previdenciários, referindo-se à maior despesa fixa da União.

Fabio Giambiagi, estudioso da Previdência e das contas públicas, compreende o surgimento das emendas impositivas diante da insatisfação dos parlamentares com os contingenciamentos na diminuta parcela de gastos discricionários. No entanto, concorda que elas alcançaram níveis nunca vistos internacionalmente. Ele ressalta que antes os ministros tinham maior controle sobre os gastos, mas esse cenário foi se alterando, e a dinâmica da despesa discricionária mudou radicalmente, prejudicando áreas essenciais como prevenção de desastres, saúde, educação e construção de estradas.

‘Governo congressual’

O cientista político Claudio Couto diz que o que chama de “governo congressual” ganhou espaço e conseguiu alterar o sistema político durante dois governos de presidentes enfraquecidos na relação com o Legislativo: Dilma Rousseff (PT) e Jair Bolsonaro (PL). De volta ao Planalto, Lula encontrou um novo cenário.

— Aquele presidencialismo de coalizão, como conhecemos, não existe mais. O grupo de parlamentares do Centrão deixa de ser de adesão, para se tornar parcialmente de adesão. Prefiro chamar de governo congressual, em que você tem o Congresso liderando o processo decisório. Lula tenta retomar o controle, mas ainda permanece uma disputa entre Legislativo e Executivo — diz o cientista político.

Procurados, o governo e os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), não se manifestaram.

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