O decreto de desapropriação do prefeito do Rio (Decreto nº 54.691/2024) [1] do terreno do “Gasômetro”, na área portuária do Rio, pertencente à Caixa Econômica Federal, suscita perplexidade jurídica e urbanística e pode contribuir para mais uma intrincada e custosa consequência patrimonial para a cidade do Rio. Vejamos os motivos abaixo.
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O fato jurídico é que, para proteger qualquer proprietário de ser despojado de seu imóvel pela vontade exclusiva e pessoal de qualquer prefeito, governador ou presidente, a Constituição e leis federais regularam, rigidamente, não só os procedimentos expropriatórios, como também os motivos e as consequências destes atos de império do poder público; e, especialmente, quando e se um bem expropriado pelo poder público pode ir parar no patrimônio de um ente privado, merecedor ou não, em tese, do benefício.
Desapropriação
Vale, então, pontuarmos três questões sobre tal cenário:
Primeiro ponto: A chamada “desapropriação por hasta pública” inexiste como tal na legislação brasileira. O que existe é desapropriação de utilidade pública, prevista no Decreto Lei nº 3.365 de 1941 [3], e a desapropriação por interesse social (Lei Federal nº 4132/62) [4], ambas ancoradas, expressamente, no artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição. E como é a União que tem a competência privativa para legislar sobre desapropriações (artigo 22, inciso II da CF), os motivos que permitem o poder público adquirir, compulsoriamente, bens privados, estão taxativamente listados nas duas leis federais referidas.
A principal diferença entre as duas leis que regulam as hipóteses legais do poder expropriatório do poder público é que nos casos previstos na lei de desapropriação por utilidade pública, os bens expropriados comporão, necessariamente, o patrimônio público, enquanto, na desapropriação por interesse social, o bem expropriado poderá ter destinação privada, em geral vinculada a algum destino social ou ambiental também previsto, expressamente, na referida lei de interesse social. Há apenas uma exceção, na lei de desapropriação por utilidade pública, que autoriza a revenda do bem expropriado ao particular: é a letra i do artigo 5º do Decreto-lei 3365 que diz:
A rigidez das hipóteses e procedimentos expropriatórios previstos em ambas as leis de desapropriação (por utilidade pública e por interesse social) visa garantir não só que o poder público tenha o poder de implementar projetos, programas e obras públicas, mas também garantir que esta aquisição compulsória do patrimônio privado tenha um destino vinculado, necessariamente, a um plano urbanístico público explicito, transparente e aprovado, seja ele de uso (utilidade) pública, seja de interesse social. Se isto não estiver claro, estabelecido, e comprovado, ou seja, se não houver um projeto público de utilização do imóvel [5], a desapropriação não pode ser considerada legal e legítima, em face do que dispõe as leis que regulam tão importante poder da administração pública, e em face do permissivo constitucional de expropriação, pelo poder público, de bem do patrimônio privado.
O segundo ponto a ser mencionado, diz respeito à vedação, contida no §3º do artigo 2º do Decreto-lei nº 3.365/41 que diz:
§ 3º É vedada a desapropriação, pelos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios de ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e empresas cujo funcionamento dependa de autorização do Governo Federal e se subordine à sua fiscalização, salvo mediante prévia autorização, por decreto do Presidente da República.
Ora, a Caixa, como empresa pública federal, embora tecnicamente seja pessoa jurídica de direito privado, integrante da administração indireta federal, depende, como tal, de lei federal autorizativa para a sua criação e funcionamento – o Decreto-lei nº 759/69 [7]. E, embora, a CEF exerça uma atividade econômica bancária em parte de seus serviços, no que diz respeito à administração do patrimônio social dos recursos do FGTS, ela o faz em caráter exclusivo, como um serviço do Estado. No caso do terreno do Gasômetro, ele compõe o fundo de investimentos administrado, sem caráter concorrencial pela Caixa, equivalendo, ao nosso ver, a um serviço público federal.
O terceiro ponto, mas não menos importante, é que ainda que houvesse um plano público para a realização de um projeto de utilidade pública ou interesse social para a área, e ainda que houvesse autorização presidencial para a expropriação de um patrimônio social da Caixa (ou o entendimento de que ela não é necessária), há perplexidade jurídica de se usar o procedimento dito de hasta pública, quando esta é explicitamente dirigida a um único beneficiário!
Hasta pública é uma modalidade de licitação para venda de bem pela administração pública. E licitação é a forma constitucional da administração pública “assegurar igualdade de condições a todos os concorrentes” interessados no negócio oferecido pelo Estado (artigo 37, XXI da CF). Portanto, o princípio da concorrência do negócio, e da impessoalidade, é central para que haja uma licitação, e, portanto, para que haja uma hasta pública. Se uma hasta pública já está previamente dirigida a um só beneficiário, como explicitamente anunciado pelo Prefeito, então ela é apenas uma simulação de licitação, feita unicamente para despistar a eventual alegação de dirigismo e privilégio da ação estatal municipal.
Se for legalmente possível inovar em desapropriações por utilidade pública, ou interesse social, com captação de recursos do pagamento por venda de bens expropriados por hasta pública, então, este passo procedimental há de estar, milimetricamente, dentro dos rigores das leis que regem as desapropriações e as licitações públicas. Caso contrário, estar-se-ia abrindo um perigoso precedente, pelo qual será possível a qualquer administrador público, seja ele federal, estadual, ou mesmo a qualquer prefeito dos mais de 5 mil municípios brasileiros adquirir, compulsoriamente, a propriedade privada, sem projeto público aprovado e explicitado, para benefício de um destinatário privado, por ele escolhido, com pré-venda dirigida, e com simulação de concorrência.
É legal? É legítimo? É constitucional? Me parece que não, mesmo!