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O mito do Livre-Comércio

O livre-comércio, hoje, não prescinde da atuação do Estado, como jamais prescindiu no passado

Fonte: Sérgio Tamer, Professor e advogado, é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública

Por Sergio Tamer

As estrepolias de Donald Trump, impondo barreiras alfandegárias e fiscais elevadas para as importações, tem tido um efeito devastador nas relações comerciais entre os EUA e seus principais parceiros comerciais. Afinal, isto é, ou não um contrassenso em meio ao processo de globalização e de economia de mercado que até os países socialistas e de regime político fechado, como a China, já adotaram?

No entanto, pode-se observar com clareza que o livrecomércio, em uma economia aberta e de mercado, só existe no interior dos estados nacionais (para acirrar a concorrência) e mesmo assim com regramentos laborais, fiscais e consumeristas pois nas relações entre países sempre existiu a intervenção do Estado e a OMC-Organização Mundial do Comércio, estabelece somente diretrizes para mitigar algumas barreiras alfandegárias e comerciais. Mesmo com a existência de blocos econômicos regionais, como o Mercosul e a União Europeia, há uma forte regulação no comércio de produtos e serviços entre os Estados-membros.

O livrecomércio, hoje, não prescinde da atuação do Estado, como jamais prescindiu no passado. Mas a correta e desejável contribuição do Estado para o desenvolvimento do livrecomércio dá-se, atualmente, na forma de “capital qualitativo”, ou seja, na criação de infraestruturas, onde se inclui a qualificação da força de trabalho e o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Dessa forma, Estado-mínimo, Estado-intervencionista e Estado-protetor são faces de uma mesma moeda, razão pela qual podemos distinguir, contemporaneamente, quatro funções básicas no Estado: 1. Criação das condições materiais genéricas da produção, representada pela infraestrutura; 2. Determinação e salvaguarda do sistema geral das leis que compreendem as relações dos sujeitos jurídicos na sociedade capitalista; 3. Regulamentação dos conflitos entre trabalho assalariado e capital; e, 4. Segurança e expansão do capital nacional total no mercado capitalista mundial. Portanto, o Estado tem o papel de desenvolver uma política econômica composta de política monetária, fiscal e social. O que Trump faz é pisar fundo no acelerador, provocando forte desarranjo nas relações multilaterais. Contudo, há razões históricas e atuais para essa política considerada por muitos como desarrazoada.

Os EUA, de fato, têm perdido a supremacia econômica em muitos setores, como o do aço, daí o seu furor na taxação das importações, com o objetivo de proteger suas indústrias para que elas voltem a crescer e se tornar competitivas: há exemplos, no passado, para justificar a implementação dessas tarifas elevadas nos tempos atuais. Na América de Trump, com a aprovação da Lei de Embargo, de Thomas Jefferson, contra os ingleses, o Norte pôde, na primeira década do século 19, construir um importante parque industrial em decorrência da retirada forçada dos ingleses. Em seguida, políticos do Norte começaram a restringir a competição britânica na construção naval, nos têxteis, nos produtos de couro, na fabricação de pregos e em outras indústrias. Alexander Hamilton, primeiro secretário da Fazenda, foi o líder da defesa dos manufatureiros e o maior responsável pela construção da base industrial que, depois, levou os EUA ao domínio econômico mundial.

Depois da Guerra de Secessão (1861-1865), e durante o restante do século 19, os EUA apoiaram seus fabricantes com a proteção das maiores tarifas sobre importações entre todas as principais nações daquela época. Passado muito tempo, já com muito maior produtividade, e sendo a potência econômica dominante, eles (como a Inglaterra, antes) começaram a defender as virtudes de um mundo sem barreiras comerciais…situação semelhante iria se verificar na Alemanha e no Japão que só nos últimos tempos tornaram-se fervorosos defensores do livre comércio global. A conclusão óbvia é que o livre-comércio não é vantajoso para países menos produtivos ou com fraca competitividade, como ocorre com os EUA em determinados setores de sua economia. Assim como quase todos os países que chegaram ao Primeiro Mundo, mediante altos índices de produtividade tiveram, em alguma época, uma política comercial protecionista em relação à indústria nacional e ainda hoje, para determinados setores, não abandonaram o protecionismo. Mas cuidado: países com estruturas monopolistas ou oligopolistas, como a maioria dos latino-americanos, não podem esquecer a segunda parte da tese: não há nenhum benefício na proteção comercial se não existe competição interna no país, uma competição verdadeiramente acirrada, pois sem essa condição básica nenhum país consegue fortalecer sua economia para competir globalmente. Símbolo da democracia dos EUA, a águia americana foi escolhida, nas palavras de Thomas Jefferson, por seu “espírito livre e coragem”. E Trump, nesse contexto, pode até ser maluco, mas não é um maluco inconsequente…

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