Publicidade
Carregando anúncio...

Guerra em Gaza deixa geração de crianças traumatizada

Um relatório destacou os profundos impactos psicológicos da guerra sobre as crianças palestinas

Fonte: Da redação com O Globo

Sama Tubail, de apenas 8 anos, encara seu reflexo no espelho e imita o movimento de pentear os cabelos com uma escova. No entanto, ao perceber que não há mais fios para alinhar, começa a chorar. Para ela, esse gesto simples remete à sua vida antes de 7 de outubro de 2023, quando ainda possuía longos cabelos e passava os dias brincando ao ar livre com seus amigos no norte da Faixa de Gaza. Desde então, ela e sua família fazem parte dos cerca de 1,9 milhão de palestinos deslocados à força de suas casas devido aos incessantes bombardeios israelenses sobre o território.

— Estou triste porque não há um único fio de cabelo para pentear com minha escova — desabafa Sama à CNN. — Eu seguro o espelho porque quero pentear meu cabelo. Eu realmente quero pentear meu cabelo de novo.

Em 2024, médicos diagnosticaram que a queda de cabelo de Sama foi consequência de um “choque nervoso”, especialmente depois que um ataque aéreo israelense atingiu a casa de seu vizinho em Rafah, no mês de agosto. Além disso, os profissionais indicaram que a desestruturação de sua rotina desde o início da guerra também contribuiu para a condição. O sofrimento psicológico da menina se intensificou quando passou a ser alvo de zombarias por parte de outras crianças devido à perda de cabelo, o que a fez se isolar. Agora, quando sai de casa, cobre a cabeça com um lenço rosa.

— Mamãe, estou cansada, quero morrer. Por que meu cabelo não cresce? — suplicou Sama à sua mãe, Om-Mohammed, questionando se permaneceria careca para sempre. — Quero morrer e ter meu cabelo de volta no paraíso, se Deus quiser.

Sama não é um caso isolado. Um relatório divulgado no final de 2024 pela War Child Alliance e pelo Centro de Treinamento Comunitário para Gestão de Crises, sediado em Gaza, destacou os profundos impactos psicológicos da guerra sobre as crianças palestinas. Com base em uma pesquisa que entrevistou mais de 500 cuidadores de crianças vulneráveis, constatou-se que 96% dos menores acreditam que a morte é iminente, enquanto 49% expressaram explicitamente o “desejo de morrer” após os ataques israelenses.

Outro relatório, publicado em junho pelo Unicef, estimou que praticamente todas as 1,2 milhão de crianças que vivem em Gaza precisam urgentemente de apoio psicológico, principalmente aquelas que foram expostas repetidamente a eventos traumáticos. Em janeiro, após o anúncio de um cessar-fogo entre Israel e o Hamas, o subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Tom Fletcher, reforçou a gravidade da situação, afirmando que “uma geração foi traumatizada”.

— Crianças foram mortas, passaram fome e morreram de frio — declarou. — Algumas sequer tiveram a chance de dar seu primeiro suspiro, perecendo junto com suas mães durante o parto.

Memórias de uma guerra brutal

O conflito em Gaza, que já matou mais de 48 mil pessoas e desencadeou um dos maiores êxodos internos da história recente, tem as crianças e adolescentes como suas vítimas mais vulneráveis. Segundo o Ministério da Saúde do enclave, ao menos 17,4 mil menores perderam a vida. Além disso, o Unicef estima que cerca de 17 mil crianças foram separadas de seus responsáveis e parentes próximos, ficando expostas a abusos, violência e exploração. O desafio de reunir esses menores com suas famílias é imenso.

— Famílias são torturadas pela incerteza do paradeiro de seus entes queridos. Nenhum pai deveria ter que cavar em escombros ou valas comuns para tentar encontrar o corpo de seu filho — afirmou Jeremy Stoner, diretor regional da ONG Save The Children para o Oriente Médio. — Nenhuma criança deveria ficar sozinha, desprotegida em uma zona de guerra. Nenhuma criança deveria ser detida ou mantida refém.

Muitos dos menores que vagam pelo enclave são os únicos sobreviventes de ataques aéreos a suas casas, acampamentos ou edifícios. A frequência desses casos levou à criação de uma sigla específica em Gaza: WCNSF (“Criança ferida, sem família sobrevivente”).

Desde que perderam seus pais em um ataque israelense, os irmãos Anas Abu Eish, de 7 anos, e Doa, de 8, vivem com a avó Om-Alabed em um campo de deslocamento em al-Mawasi, Khan Younis. Anas relembra a cena devastadora que presenciou:

— Eu estava brincando de bola quando vi papai e mamãe caídos na rua. Um drone veio e explodiu sobre eles.

No mesmo campo, Manal Jouda, de 6 anos, recorda com detalhes a noite em que sua casa foi destruída, matando seus pais e deixando-a soterrada sob os escombros.

— Havia areia na minha boca. Eu gritava, eles cavaram com uma pá, e nosso vizinho dizia: “Essa é a Manal, essa é a Manal”. Eu estava acordada, meus olhos estavam abertos sob os escombros, minha boca estava aberta, e a areia entrava nela — relatou.

Desafios para o atendimento psicológico

Oferecer assistência em saúde mental para palestinos na Faixa de Gaza sempre foi um grande desafio, mas a guerra tornou essa tarefa ainda mais difícil. Segundo Yasser Abu Jamei, diretor do Programa Comunitário de Saúde Mental de Gaza (GCMHP), sua própria equipe sofreu traumas severos ao longo dos últimos 15 meses, o que prejudicou a capacidade de tratar outras vítimas. Ele explicou à CNN que a maioria dos profissionais está vivendo em campos de deslocamento e que menos de dez ainda permanecem em suas casas.

Uma das abordagens usadas pelo GCMHP para ajudar as crianças é a terapia por meio do desenho, que permite expressar emoções sem necessidade de verbalização. Abu Jamei compartilhou o caso de um menino que conseguiu descrever sua dor após desenhar uma cena do que viveu.

— Ele disse: “Meus amigos estão no céu, mas um deles foi encontrado sem cabeça. Como ele poderia ir para o céu sem a cabeça?” — recordou Abu Jamei. O menino, então, começou a chorar.

Com o fim do frágil cessar-fogo entre Israel e o Hamas e a retomada da ofensiva militar israelense, a situação humanitária em Gaza voltou a se deteriorar rapidamente. O Ministério da Saúde local anunciou que, apenas nas últimas 48 horas, 970 palestinos morreram em decorrência dos bombardeios. O governo israelense afirmou que os ataques foram coordenados previamente com os Estados Unidos, o que gerou protestos tanto em Gaza quanto em Israel.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, afirmou que essa ofensiva era “apenas o começo” e defendeu que a pressão militar é essencial para garantir a libertação dos 58 reféns ainda mantidos pelo Hamas. Essa posição agradou especialmente a direita radical israelense, levando o partido do extremista Itamar Ben-Gvir a retornar à coalizão governista, após ter abandonado o governo durante o cessar-fogo. No entanto, grande parte da população civil se opõe à continuidade da guerra.

— Essa é uma guerra contra as crianças de Gaza. Elas são a maioria da população, as mais vulneráveis e as que mais sofrem as consequências desse conflito — alertou Ricardo Pires, porta-voz da Unicef, ao jornal O Globo. — A vida delas está em risco todos os dias. Esse trauma vai marcar gerações.

Fechar