A eleição do cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio como o 266º Papa marcou um divisor de águas na história recente da Igreja Católica. Primeiro pontífice latino-americano e o primeiro a adotar o nome Francisco — em homenagem a São Francisco de Assis, padroeiro dos pobres —, o Papa liderou por 12 anos um processo de transformação que buscou aproximar o Vaticano dos problemas sociais e humanitários do mundo contemporâneo.
Com um perfil progressista e uma linguagem acessível, Francisco conquistou popularidade global ao abordar temas antes considerados tabus, como os direitos LGBTQIAP+, justiça social, imigração e preservação ambiental. Ao mesmo tempo, enfrentou forte resistência dentro da própria Igreja, sobretudo entre os setores conservadores contrários à descentralização do poder, historicamente concentrado na Europa.
Segundo Filipe Domingues, especialista em Vaticano, Francisco “retomou o projeto de uma Igreja que fala para o mundo”, abrindo espaço para a escuta ativa dos fiéis e ampliando a presença institucional em regiões tradicionalmente à margem das decisões da cúpula católica.
Essa descentralização ficou clara na nomeação de cardeais de países da África, Ásia e América Latina — um esforço para “deseuropeizar” a Igreja, como aponta Carlos Frederico Gurgel, professor de Filosofia da Universidade Católica de Petrópolis. Ao dar voz a regiões que antes eram apenas campo de missão, Francisco buscou reequilibrar o centro de poder do Vaticano.
Mas o processo foi conturbado. Reformadores como Francisco costumam encontrar resistência por mexer em estruturas arraigadas. Francisco Borba, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, explica que o Papa enfrentou duras críticas por sua postura acolhedora e pela escolha de temas como a opção preferencial pelos pobres. “Foi chamado de comunista e acusado de trair o Evangelho, quando, na verdade, ele foi firme com seus auxiliares e buscou reformar a Cúria, embora com dificuldades”, afirma Borba.
Entre os marcos do seu pontificado, está a ampla reforma do Código de Direito Canônico, em 2021, que incluiu punições mais severas contra abusos sexuais, como a expulsão de padres envolvidos em casos de pedofilia. A medida simboliza uma virada na postura da Igreja diante de um dos escândalos mais graves da sua história.
Outro avanço foi a convocação inédita de um processo global de escuta dos fiéis, em 2021, envolvendo mais de 1,3 bilhão de católicos ao redor do mundo. Questões como o celibato obrigatório, a ordenação de mulheres, os divórcios e os relacionamentos homoafetivos foram colocadas em debate. Para Arnaldo Lemos, sociólogo da PUC-Campinas e ex-padre, a iniciativa foi uma tentativa de conter o declínio do cristianismo diante da crescente secularização. “Discutir o celibato hoje é central. A justificativa histórica já não se sustenta”, afirma.
No Sínodo da Amazônia, realizado em 2019, bispos da região sugeriram a ordenação de homens casados para ampliar a presença da Igreja nas comunidades indígenas e ribeirinhas. A proposta gerou reação dos conservadores, incluindo do papa emérito Bento XVI, e acabou rejeitada. Já a ordenação de mulheres sequer foi considerada prioritária, embora Francisco tenha reconhecido a liderança feminina nas bases da Igreja. “Dizer que essas mulheres não são líderes porque não são padres é falta de respeito”, escreveu em seu livro Vamos sonhar juntos.
Francisco também fortaleceu o conceito de sinodalidade — um novo modelo de governança na Igreja baseado em consulta e colegialidade. A proposta prevê mais autonomia às conferências episcopais e maior participação dos leigos, o que, segundo Domingues, representa uma guinada para uma Igreja mais horizontal. No entanto, ele pondera que essa abertura pode aumentar a distância entre as igrejas locais e o Vaticano.
Com discursos contundentes contra a guerra, a desigualdade e o desrespeito aos refugiados, Francisco rompeu com o silêncio diplomático que muitas vezes caracterizou o Vaticano. Durante a pandemia, uma imagem emblemática do seu papado rodou o mundo: sozinho na Praça São Pedro vazia, rezando pelo fim da Covid-19.
Mesmo sem alterar formalmente a doutrina católica, Francisco conduziu a Igreja por uma rota de reforma institucional e escuta pastoral que deixará marcas profundas. Seu legado é de um pontífice que, apesar das críticas, preferiu o diálogo à rigidez, a misericórdia à exclusão, e a ação social à mera contemplação.