Sergio Tamer.
A liberdade de expressão se constitui em um dos principais pilares das democracias, e no Brasil a sua garantia está insculpida no artigo 5º, inciso IV, que estabelece: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Uma das instituições que por muito tempo foi considerada símbolo na defesa das liberdades e contra a censura, ao lado da OAB, foi a ABI – Associação Brasileira de Imprensa. De fato, tanto a OAB quanto a ABI, durante a ditadura militar (1964-1985),foram destacadas por uma postura crítica e de defesa da liberdade de imprensa, apesar de enfrentar censura e perseguições como é notório em vários registros históricos. Mas tudo isso ficou no passado. A OAB tornou-se uma entidade morna e a ABI atrelou-se a órgão do Executivo federal, de que é exemplo a sua participação direta, dentro da Advocacia-Geral da União, de uma controversa “Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia”.
Não é de se estranhar, portanto, que ambas as instituições – OAB e ABI, outrora autênticos rochedos em favor da liberdade de expressão, estejam processando ninguém menos que o jurista Ives Gandra Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie, de São Paulo, por expressar sua opinião a respeito do art. 142 da Constituição da República. Para Gandra, a leitura do artigo 142 da Constituição permite concluir que as Forças Armadas têm, entre suas funções, a de atuar como poder moderador em conflitos entre os Três Poderes, desde que convocadas por um deles. Ele sustenta que o dispositivo não limita a atuação militar à defesa externa ou à garantia da lei e da ordem, mas prevê também a garantia dos poderes constitucionais, com mediação em caso de impasses. Foi o bastante para que a ABI de hoje movesse, desde 2023, um processo disciplinar na OAB de São Paulo contra o professor Gandra que, aos 90 anos de idade, foi pessoalmente defender-se da acusação.Conforme ele próprio tem escrito, essa tesenão se refere à possibilidade de intervenção militar autônoma, nem implica ruptura democrática. Ao contrário, exige provocação de um dos Poderes e não autoriza ações fora dos marcos legais, mas somente um papel temporário de moderação exercido pelos militares. Sua posição é pública desde os anos de 1980 e consta de pareceres, artigos e livros acadêmicos. Pois bem. O processo havia sido arquivado em fevereiro deste ano, mas foi retomado, há poucas semanas, depois que a ABI entrou com um recurso e um dos conselheiros do tribunal da OAB pediu vista do caso, levando agora o seu desfecho a uma data indefinida. O ministro Alexandre de Moraes, em julgamento da PET 12.100, na Primeira Turma do STF, afirmou: “É sempre bom repetir: o artigo 142 não tem absolutamente nada a ver com o poder moderador, e os juristas que assim escrevem não são juristas, são golpistas”.
Na democracia americana, meca do capitalismo ocidental, devido à liberdade de expressão e associação garantida pela Primeira Emenda da Constituição, o Partido Comunista, por exemplo, é ali permitido, mesmo que suas ideias afrontem o sistema econômico praticado naquele país. E embora haja preocupações sobre a influência do comunismo e a sua relação com regimes totalitários, os EUA não proíbem a existência ou o seu funcionamento, nem tampouco a de outros partidos políticos com ideologias diferentes, mesmo que não sejam democráticas. Em outro diploma jurídico-político, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, especificamente no Artigo 19, é consagrada a liberdade de opinião e de expressão cujos fundamentos remontam a Voltaire (1694 – 1778), escritor, historiador e filósofo iluminista francês que defendia a liberdade de expressão, liberdade de religião e separação entre igreja e estado. Sua postura crítica, especialmente no tocante à intolerância religiosa praticada com mão de ferro pela Igreja Católica do seu tempo, lhe valeu uma séria perseguição: foi censurado e teve suas obras proibidas; foi preso na Bastilha em duas ocasiões e, além da prisão, Voltaire também foi exilado. Como se sabe, os tribunais da Inquisição, como o Santo Ofício, que perdurou até o século 19, tinham como objetivo combater a heresia e garantir a ortodoxia católica, utilizando métodos rigorosos, incluindo tortura e execuções. A frase “Discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo, frequentemente atribuída a Voltaire, é na verdade da sua biógrafa Evelyn Beatrice Hall, e foi escrita no seu livro “Os Amigos de Voltaire” como uma síntese do pensamento do filósofo iluminista. Ele viveu o tempo deimpiedosos inquisidores que mandavam torturar e matar os hereges que ousavam contrariar os cânones eclesiásticos. Hoje, buscam-se “golpistas”, como o professor Ives Gandra, que teimam em usar a sua liberdade de expressão para emitir opiniões, mesmo que elas sejam contrárias ao establishment da ocasião. Mas isso já está sendo perigoso nos dias atuais…