A partir de agora, juízes e juízas de todo o Brasil deverão considerar o impacto das desigualdades raciais ao proferirem decisões judiciais. Essa mudança decorre da aplicação efetiva do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, estabelecido como norma obrigatória pela Resolução nº 598/2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em novembro do ano passado. O documento traz diretrizes claras para que o racismo estrutural seja enfrentado também no âmbito do Poder Judiciário.
O que a decisão significa, na prática?
A adoção do protocolo impõe aos tribunais e magistrados de todos os ramos da Justiça (Penal, Cível, Trabalhista, de Família, Eleitoral, entre outros) a obrigação de levar em conta os efeitos da raça, do racismo e da desigualdade racial nas situações concretas julgadas. Isso vale tanto na análise dos fatos quanto na valoração das provas e nas consequências jurídicas das decisões.
Na prática, isso quer dizer que não será mais aceitável julgar casos com aparente neutralidade quando há elementos raciais evidentes no contexto social, econômico ou cultural dos envolvidos. Por exemplo, prisões, demissões, processos de guarda, abordagens policiais ou litígios previdenciários que envolvam pessoas negras deverão ser analisados à luz dos padrões históricos de exclusão racial que marcam a sociedade brasileira.
Diretrizes e obrigações dos tribunais
A Resolução do CNJ determina que os tribunais ofereçam capacitação contínua para magistrados e servidores, com foco em raça, etnia e direitos humanos. Essa formação deve estar presente tanto nos cursos de formação inicial para novos juízes quanto nos cursos obrigatórios de atualização.
Além disso, o conteúdo do protocolo deverá estar disponível de forma ampla ao público, tanto em canais digitais quanto físicos, e os próprios tribunais terão a obrigação de promover sua divulgação e aplicação cotidiana.
A responsabilidade pelo monitoramento da medida caberá ao Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Equidade Racial (Fonaer), que também será encarregado de propor melhorias, promover fóruns de sensibilização e dialogar com entidades da sociedade civil.
Julgar com interseccionalidade
O protocolo também orienta que as decisões levem em conta a interseccionalidade — ou seja, como fatores como raça, classe social e gênero se combinam e afetam a vivência dos indivíduos envolvidos nos processos.
Na área criminal, por exemplo, juízes são instruídos a considerar como a seletividade penal afeta a população negra, que representa a maioria dos presos no Brasil. Já na Justiça do Trabalho, deve-se observar como práticas discriminatórias estruturais podem impactar contratações, promoções ou demissões de pessoas negras.
Um marco normativo com base em direitos humanos
Segundo o conselheiro do CNJ João Paulo Schoucair, coordenador do grupo técnico que elaborou o documento, a intenção é que o protocolo alinhe o Judiciário aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil na área de direitos humanos.
“Trata-se de um instrumento essencial para alinhar o Judiciário aos marcos normativos de direitos humanos, buscando uma prestação jurisdicional cada vez mais antenada com a isonomia material e a consagração da dignidade humana”, destacou Schoucair.
Alinhamento à Agenda 2030 da ONU
A iniciativa também está diretamente vinculada à Agenda 2030 das Nações Unidas, especialmente aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que tratam da promoção da igualdade racial, da justiça e de instituições inclusivas e eficazes.
Com a implementação do Protocolo, o Poder Judiciário brasileiro assume um papel ativo no enfrentamento do racismo institucional, não apenas reconhecendo as desigualdades, mas também trabalhando para corrigi-las por meio de decisões mais justas, conscientes e comprometidas com a equidade.