Por Sergio Tamer, presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP
Na carta que enviou ao presidente Lula, o polêmico presidente americano referiu-se a uma “caça às bruxas” que, na sua visão, o seu amigo brasileiro, e não só, estaria sendo vítima. O uso dessa expressão, até certo ponto popular no Brasil, nos remete ao seu sentido histórico e figurado para melhor compreender o seu alcance pejorativo de hoje.
Certo é que houve um período na história de grande perseguição, julgamento e punição sistemática de pessoas, principalmente mulheres, acusadas de bruxaria, sendo elas torturadas e frequentemente executadas. Muitas delas eram curandeiras, parteiras ou mulheres que viviam sozinhas, mas também crianças e outras figuras que não se encaixavam nos padrões da época.
Ocorreu durante um período de transição do feudalismo para o capitalismo, e a perseguição visava também disciplinar corpos e estabelecer hierarquias de gênero. Assim, a“caça às bruxas”, historicamente falando, pode-se afirmar que foi um movimento de perseguição religiosa, política e social, cujo período clássico foi iniciado no século XV, atingindo seu apogeu nos séculos XVI a XVIII, principalmente na Alemanha, Escandinávia, Inglaterra, Escócia, Suíça e, em menor escala, na Polônia, Rússia, Finlândia, Islândia, Irlanda, França, Portugal, Itália, Áustria e Império espanhol.
Desse movimento político-religioso, nada menos que trinta e cinco mil a cinquenta mil execuções foram realizadas. Daí o seu sentido figurado, hoje, descrever como “caça às bruxas” uma investigação pública e intensa, que busca mais enfraquecer opositores políticos, expor corrupção ou deslealdade do que revelar uma verdade. Tem o sentido de uma investigação “oficial” que, na verdade, é uma perseguição política disfarçada de investigação para identificar e eliminar adversários.
O seu objetivo real, portanto, é o de enfraquecer a oposição política ou ideológica, trazendo danos à reputação ou à carreira de pessoas. Como consequência, a oposição passou a fazer coro com Donald Trump ao alegar, em sua defesa, que está sendo vítima de uma “caça às bruxas” por parte de alguns ministros do STF.
Até o espalhafatoso Silas Malafaia, que parece ter se enredado em definitivo nas ações determinadas pelo ministro Alexandre de Moraes, ao perceber que também poderá ir para o cadafalso montado na Corte suprema, está estrebuchando mais do que arara baleada em vídeos que fez circular pelas redes. Até onde iremos?
No livro Directorium inquisitorum ou Manual do Inquisidor, de 1376, publicado pelo teólogo e inquisidor catalão Nicolas Eymerich, a bruxaria foi definida como heresia e ali foram descritos os meios para descobrir e reconhecer as bruxas, assim como extrair confissões por meio de tortura. Talvez o julgamento de bruxa mais notório da história tenha sido o julgamento de Joana d’Arc, em 1431. Embora o julgamento tenha sido politicamente motivado e o veredito posteriormente anulado, a posição de Joana como mulher e bruxa acusada tornou-se um fator significativo em sua execução.
A punição de ser queimada viva (as vítimas geralmente eram estranguladas antes de serem queimadas) era reservada apenas para bruxas e hereges, implicando que um corpo queimado não poderia ser ressuscitado no Dia do Juízo Final. Em 1487 foi lançado o livro Malleus Maleficarum, ou o “Martelo das Feiticeiras” pelos inquisidores Heinrich Kraemer e James Sprenger, pelo qual eram definidas “as práticas consideradas demoníacas”, sendo que a maioria das citações no Malleus vêm de várias obras de Tomás de Aquino.
Essa obra de Kraemer, que é considerada “um catálogo de sadismo e perversão”, conclui que as feiticeiras são geralmente mulheres, em razão da sua suposta credulidade e baixa inteligência. Já os homens, considerados mais fortes e inteligentes, estariam mais aptos a abominar a feitiçaria. Há uma passagem em que diz:“Bendito seja o Senhor Supremo que até hoje, preservou o macho deste tipo de comportamento tão vergonhoso, e tornou o homem claramente privilegiado, uma vez que Ele desejou nascer e sofrer em nosso nome, sob o disfarce de um homem.” Assim era o catecismo da Igreja Católica até o século XVIII.
O livro tornou-se uma espécie de compêndio sobre caça às bruxas e vai ter grande influência do outro lado do Atlântico no século XVII (1601–1700) sobre as comunidades puritanas nos Estados Unidos, tendo sido utilizado no famoso caso das bruxas de Salém. Com a popularização do Malleus Maleficarum depois do ano 1500, o número de julgamentos e execuções aumentou vertiginosamente. Mesmo com a reforma protestante, a partir de 1517, a perseguição continuou pois os reformadores também aceitavam as ideias expostas no “Martelo das Feiticeiras”.
Dessa maneira, a “caça às bruxas” na era moderna, que varreu o centro e norte da Europa, aconteceu em um mundo sacudido pela Reforma Protestante e pela Contrarreforma, assolado por guerras religiosas e políticas e fustigada pela fome e pelas doenças. Foi considerado um dos períodos mais sanguinário da história, que atingiu tanto terras católicas como protestantes.
O Conselho Federal da OAB, em nota recente divulgada pelos meios de comunicação, propôs um “pacto pela pacificação do Brasil” e criticou a imposição de medidas cautelares “severas”, além de prisão a réus e investigados antes do trânsito em julgado. Fez uma crítica àquilo que seria como uma espécie de “caça às bruxas” em seu sentido figurado. Advertiu que o Supremo Tribunal Federal deve se orientar por princípios democráticos e que a sua atuação, cuja missão é proteger a Constituição, deve sempre seguir os princípios que sustentam a própria democracia.
Não faz tempo, na época da ditadura Vargas, o brasileiro tinha receio do “Chefe de Polícia” que obedecia às ordens dos interventores estaduais. Agora, pelo que se vê, e em face das notórias injunções políticas, o medo que voltou a afligir o cidadão mudou de Instituição, porém se afigura ainda maior..