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Os que mandam no Brasil

Qual o segredo para esse mandonismo tão longevo?

Fonte: Sérgio Tamer

O Brasil tem dono? Quem manda no Brasil? Quando Raymundo Faoro escreveu “Os Donos do Poder”, corria o ano de 1958, Pelé despontava na primeira Copa do Mundo conquistada pelo Brasil, na Suécia, mas vivia-se num momento decisivo da história política brasileira, com uma democracia instável, que foi de 1946 a 1964. Havia, no período, eleições regulares e pluralismo partidário, porém com uma
forte intervenção do Estado na economia, resultado da herança do Estado Novo (1930-1946) eufemismo usado para designar o período da ditadura Vargas. Era patente a fragilidade institucional com conflitos constantes entre Executivo, Legislativo e forças militares. A democracia era formal mas com crises recorrentes, tentativas de novos golpes e deficuldade para se formar uma cidadania política. A rápida industrialização e uma urbanização acelerada, com ênfase no êxodo rural, tinham como contraponto o fortalecimento da burocracia estatal, a ampliação do funcionalismo e das empresas estatais. Todavia, o crescimento econômico, ontem como hoje, não gerava democracia.

Esse contexto explica por que Faoro não escreve um livro de conjuntura, mas uma interpretação estrutural e de longa duração do poder no Brasil — justamente para mostrar que os problemas da democracia não eram episódicos, mas históricos. Ele apontava, então, para o estamento burocrático como sendo o núcleo permanente do poder político no Brasil. Para Faoro, ele não é apenas um grupo administrativo, mas uma camada dirigente que se apropria do Estado e governa em nome da legalidade, porém em benefício próprio. Alguma diferença, assim, de ontem para hoje?!

Esse estamento burocrático por certo não é uma classe econômica (como a burguesia industrial), tampouco é o “povo” e menos ainda uma elite social tradicional. O estamento burocrático que manda no Brasil, na concepção de Faoro, é uma camada política organizada em torno do Estado com status e privilégios próprios e  que se reproduz por meio do acesso ao poder estatal,   relativamente fechado à sociedade. E acrescenta que, ao longo do tempo, o estamento se formou com altos funcionários  da administração pública; juristas, magistrados e bacharéis; militares de alta patente;  políticos profissionais;  tecnocratas e dirigentes de estatais. Embora algumas denominações se alterem com o tempo, a função estrutural permanece, sobrevivente que é da fase da Independência, da República e das constituições liberais. Qual o segredo para esse mandonismo tão longevo?

Primeira lição: o estamento burocrático se apropria do Estado, tendo-o como fonte de renda, distribuidor de cargos e favores, servindo como instrumento de poder pessoal. Depois, a distinção entre interesse público e privado é sistematicamente desconsiderada. Segunda lição: o controle da legalidade assume papel relevante e, diferente do mandonismo puro, o estamento governa por meio de leis, regulamentos e constituições, utilizando-se dodireito como linguagem de legitimação. Isto é, transforma a legalidade em técnica de dominação. A lei, portanto, não limita o poder, mas tão somente organiza o acesso a ele. Ora, vemos hoje que o Congresso Nacional está com a sua estatura democrática diminuida, uma espécie de pigmeu entre os seus pares e, mal começa a discutir um projeto de lei mais sensível às questões políticas do momento, e já aparece um ministro do STF na televisão avisando que a matéria é “inconstitucional” e que, se for aprovada, dali não passará…Até já tem movimentos nas ruas com a bandeira “Congresso inimigo do povo”…o que desejam? Fechar o parlamento?!…

A consequência desse modus operandi é a existência de um claro bloqueio da sociedade, impedindo a sua autonomia, desestimulando partidos e movimentos independentes, transformando direitos em concessões estatais e fazendo com que haja uma cidadania dependente e tutelada. O estamento burocrático detém o poder porque se adapta com facilidade às suas mudanças, resistindo às revoluções políticas, ajustando-se aos regimes autoritários ou democráticos, absorvendo discursos liberais, nacionalistas ou tecnocráticos. Daí se dizer que muda a forma mas não a substância do poder.

A consequência desse quadro estrutural que persiste ainda com mais força no Brasil contemporâneo, é muito prejudicial para a saúde democrática, pois eleições não são capazes de deslocar o centro real do poder e a democracia tende a ser procedimental, não substantiva. Daí a manutenção do clientelismo político, a centralização decisória, e a resistência a reformas estruturais, como, por exemplo, a proposta de mandato de 8/10 anos para membros do STF, acabando com a vitaliciedade; ou a proibição de reconduzir por mais de duas legislaturas um mandato parlamentar, evitando-se a permanência do político carreirista e profissional.

O certo é que temos, hoje, um estamento burocrático que prevalece sobre a representação popular, consistindo numa elite política que atua pela apropriação legal do poder, impede a autonomia da sociedade e a tudo querendo impor regras e condições, o que faz com que tenhamos uma democracia meramente formal, controlada e limitada, tal como antes já previra Raymundo Faoro em sua clássica obra. E enquanto a lei for instrumentalizada, o Estado não for a  expressão da vontade geral, mas de um estamento burocrático e o
o direito funcionar como técnica de dominação, e não como garantia de autonomia, as lições de “Os donos do Poder” estarão mais atuais do que nunca…

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