O Glifosato representava 62% do uso de herbicida no Brasil, entre 2009 e 2016, voltado especialmente para produção de soja. Em 2017, a substância representava 30% dos herbicidas mais utilizados no mundo inteiro. Estima-se que, desde a década de 1990, após a criação de sementes resistentes à substância, o uso do produto aumentou cerca de 15 vezes. Além disso, segundo o DataInteligence, a aplicação de Glifosato em plantações agrícolas deve crescer 800% até 2025. Em meio a este cenário, um estudo da Fundação Getulio Vargas constatou que o produto tem efeitos sobre a saúde humana e identificou um aumento da mortalidade infantil em regiões próximas aos locais onde o Glifosato é aplicado.
O estudo indica que, entre 2000 e 2010, houve aumento de 5% na taxa de mortalidade infantil, o que corresponde a cerca de 503 mortes infantis por ano de crianças cujo as mães residiam próximas onde o Glifosato foi aplicado, mais especificamente, no trajeto do fluxo de água levando a substância aplicada em plantações agrícolas para rios, córregos e poços. O período analisado na pesquisa coincide justamente com a época em que houve aumento expansivo no uso do Glifosato.
Apesar desses indicativos encontrados pelos cientistas, o pesquisador da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV EAESP), Rudi Rocha, coautor do estudo, afirma que este número provavelmente subestima o efeito geral do uso de Glifosato sobre a saúde humana:
“Existe uma preocupação acerca da toxicidade subclínica dessas substâncias sobre as populações em geral, não sujeitas à exposição direta, mas expostas a baixas concentrações através da ingestão de água ou alimentos contaminados”, explicou o pesquisador. Ele ressalta ainda que este tipo de intoxicação é apenas a ponta do iceberg, pois pesticidas como este são capazes de causar uma ampla gama de efeitos assintomáticos em níveis de exposição muito baixos que não produzem sinais e sintomas evidentes.
“A população afetada por esta toxicidade subclínica pode ser muito maior do que a parcela afetada pela exposição direta”, alertou. Rocha também contextualiza que não está claro como essa contaminação indireta tem efeitos relevantes sobre a saúde humana, por isso, destaca a importância de estudos como este para compreender as consequências do uso de pesticidas em geral, a fim de contribuir para um debate público sobre o tema, que até então, é dominado por interesses econômicos e controvérsias científicas.
De acordo com o pesquisador, os produtores deste herbicida costumam defender que as condições físico-químicas do produto são boas, com uma meia-vida curta que faz o Glifosato se decompor em uma outra substância pouco nociva. Porém, já existem evidências científicas que constataram a presença do produto nas coletas de água provenientes de rios, córregos, entre outros, em localidades diferentes da região onde o produto foi aplicado.
Conduzindo os experimentos
Rudi Rocha destaca que evidências científicas já comprovam em laboratório que embriões humanos são particularmente sensíveis às condições ambientais e ao Glifosato. O produto, ao ser aplicado em plantações para eliminar ervas daninhas, pode ser capaz de afetar células placentárias e o feto. Para testar o nível deste efeito, Rocha conduziu uma série de estimações econométricas, junto aos pesquisadores Mateus Dias, da Católica-Lisbon School of Business and Economics, e Rodrigo Soares, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). O grupo analisou bases de dados municipais que cobrem todas as cidades das regiões Sul e Centro-Oeste do país.
Em busca de capturar o efeito do Glifosato na saúde humana, o grupo precisou em primeiro lugar eliminar questões correlacionadas. “É muito difícil medir o impacto dos pesticidas sobre a saúde humana por inúmeras questões, é delicado porque muitas regiões que utilizam esses produtos passam a crescer economicamente, se conectando com outras regiões, gerando imigração, etc. Então é um desafio isolar especificamente o efeito do Glifosato sobre a saúde”, apontou Rudi Rocha.
Para medir o efeito do produto sobre a saúde humana sem interferências socioeconômicas, os pesquisadores utilizaram um método econométrico baseado em uma técnica estatística conhecida como “variável instrumental”, capaz de mensurar a adequação natural ao Glifosato a nível local, sem estar correlacionada com outras características.
“Exploramos a ideia de que ao ser aplicado em uma área específica, este herbicida pode contaminar o solo, e por meio do fluxo de água ser carregado rio abaixo, afetando pessoas que consomem a água longe do local onde o pesticida foi usado”, explicou o pesquisador.
O estudo utilizou bases de dados de bacias hidrográficas no Brasil para investigar o fluxo de água em cada uma delas e vincular essas informações com dados de nascimento no país. Além disso, também foram utilizados dados de precipitação para identificar o nível de chuva, a fim de avaliar se o fluxo de água era capaz de levar o Glifosato para outras regiões.
“A ideia era a seguinte: em uma determinada localidade onde ocorre aumento na utilização da substância, que se deu principalmente após a liberação do uso de sementes geneticamente modificadas de soja e resistentes ao glifosato, analisamos o impacto na saúde infantil em populações que residem em regiões próximas, considerando o fluxo hidrográfico subterrâneo e superficial. Ou seja, se um produtor agrícola aplica o Glifosato em uma plantação, após a chuva ou irrigação, olhamos para os municípios que estariam abaixo daquela região, por onde aquela água potencialmente contaminada passaria”, detalhou Rocha.
Quando o fluxo da água é fatal
Ao investigar a presença do Glifosato neste fluxo hídrico, a pesquisa constatou a deterioração na saúde infantil justamente em áreas próximas e à jusante de onde houve aumento no uso de Glifosato. Este aumentou cresceu consideravelmente a partir de 2004, quando houve mudanças na lei para permitir o uso de sementes de soja geneticamente modificadas.
Além disso, quanto maior for o volume de chuva na região onde o produto é aplicado, e quanto mais inclinado esse terreno for, maior será a disseminação da substância para as regiões do entorno e, consequentemente, maior o impacto na mortalidade infantil. “Quando chove mais, e onde o terreno é mais inclinado e tem maior nível de erodibilidade, a chuva arrasta o produto para outras regiões com mais rapidez”, alega Rocha.
Além de mortalidade infantil, a pesquisa identificou ainda um aumento de nascimentos prematuros e baixo-peso ao nascer, também nas regiões enquadradas no fluxo da água, que vai da plantação agrícola onde o Glifosato foi aplicado até as residências localizadas rio abaixo.
Para certificar que os danos causados à saúde humana foram provenientes do herbicida em específico, e não de outras substâncias presentes na água, os pesquisadores realizaram uma série de testes de robustez, que avalia a precisão e estabilidade das estimativas. “Utilizamos dados de estações de tratamento da água para verificar se outras substâncias além do Glifosato estavam presentes, e não foram encontrados resquícios de outros produtos”, elucidou Rocha.
Por fim, o pesquisador reitera que o perfil da mortalidade é consistente com o que seria esperado da exposição ao Glifosato durante a gravidez: 56% do efeito total vêm de condições do período perinatal e 19% vêm de condições respiratórias. Ele acrescenta que cientistas têm reexaminado recentemente as alegações de que o Glifosato é um pesticida seguro, com pouco ou nenhum efeito sobre a saúde humana.
“Já existiam dados sobre o efeito do Glifosato na saúde humana de forma mais direta, como já ocorreu diversas vezes de agricultores utilizarem esse produto e adoecerem após o manejo do mesmo. Entretanto, não havia informações sobre como essa substância é capaz de interferir na saúde da população do entorno. Como esses resultados eram desconhecidos quando as regulamentações atuais foram estabelecidas, uma nova discussão deve ser iniciada sobre o marco regulatório para o uso e manuseio de herbicidas à base de Glifosato”, concluiu.