Uma fazenda que faz a lavagem dos dejetos do piso, sem antes fazer a raspagem: o simples fato de fazer a raspagem antes da lavagem irá significar uma economia significativa de água. Parece pouco! Mas isso já será uma grande inovação.
Outra fazenda que, a partir de suas áreas de telhado, faça a captação da água da chuva, armazene em cisterna e utilize essa água para várias finalidades. Essa é uma grande tecnologia que terá como impactos positivos, a redução da captação de água das fontes naturais e dará maior segurança hídrica a propriedade (figura 1).
Uma prática também inovadora será incluirmos a visão de uso eficiente da água e de nutrientes na formulação das dietas. Dietas bem formuladas, podem promover uma melhor relação litros de água por quilograma de carne ou de leite produzidos, bem como melhorar a eficiência de uso de nutrientes como o nitrogênio e fósforo. Sempre digo, o manejo ambiental da pecuária começa pela boca do animal! Manejo nutricional bem-feito, significa menor impacto ambiental. Parece básico, mas essa seria uma visão inovadora para pecuária nacional.
Por fim, só gostaria de frisar que qualquer tecnologia por si só não irá promover grandes avanços ambientais. A tecnologia é uma ferramenta, mas não deve ser o objetivo final. Ou mudamos culturas produtivas e consideramos a questão ambiental na tomada de decisão, ou não haverá tecnologia salvadora. Temos muitas tecnologias para reduzir a emissão de gases do efeito estufa, seja da agropecuária ou de outras atividades, mas as emissões absolutas de gás carbônico só têm aumentado ao longo dos anos e o planeta aquecendo cada vez mais.
Figura 1.
Fazenda de leite em sistema confinado com captação da água de chuva para lavagem do piso.
Fonte: Acervo do autor
Scot Consultoria: Quais são os principais desafios enfrentados pelos produtores para implementar práticas de uso racional de água na produção animal?
Julio Cesar Pascale Palhares: No Brasil, ainda temos uma cultura de água sendo algo abundante e barato. E o que é abundante e barato, não damos valor. A primeira coisa é mudar essa cultura.
As mudanças climáticas estão aí para mostrar que há regiões em que a disponibilidade de água é cada vez menor e, infelizmente, isso tende a se agravar. Deve se ter como atividade rotineira a atualização e a capacitação técnica ambiental de todos os envolvidos na criação e promover treinamentos para elevar os níveis de informação e conhecimento quanto à importância da água. Devemos internalizar o manejo hídrico nas propriedades, aqui definido como: uso cotidiano de conhecimentos, práticas e tecnologias que garantam a oferta de água em quantidade e qualidade.
Na tabela 1,apresento os desafios para as cadeias pecuárias melhorarem sua eficiência hídrica. Os desafios serão vencidos no curto, médio e longo prazos devido às especificidades de cada cadeia pecuária e sistema de produção, região produtora, estrutura dos órgãos de fiscalização, pressão social e de mercados.
Tabela 1.
Desafios Hídricos para produção pecuária.
Fonte: Julio Cesar Pascale Palhares
Scot Consultoria: Como a seleção genética pode ser adotada para se ter bovinos geneticamente mais eficientes no uso da água?
Julio Cesar Pascale Palhares: No Brasil, estudos relacionando o melhoramento genético com o consumo de água, estão sendo feitos para bovinos de corte. Em outros países, essa relação tem sido considerada em programas de melhoramento genético, mas os estudos são muito iniciais.
Scot Consultoria: Quais as diferenças entre as pegadas hídricas azul, verde e cinza? Como calcular esse indicador dentro de um confinamento?
Julio Cesar Pascale Palhares: Em meados do ano 2000, pesquisadores propuseram a abordagem da pegada hídrica. A essência é a mesma que já vinha sendo desenvolvida pelas pegadas ecológica e de carbono, entender os sistemas de produção como elos de uma cadeia produtiva, que se inicia na geração de insumos e termina na oferta de produtos ao consumidor. A pegada hídrica pode ser expressa em litros de água por quilograma de carne ou de leite.
A abordagem da pegada hídrica considera no cálculo a água efetivamente consumida e não a água captada. No infográfico apresentado na figura 2 se observa quais os consumos de água considerados no cálculo.
Figura 2.
Fluxograma de classificação dos consumos de água na abordagem da pegada hídrica.
Fonte: Julio Cesar Pascale Palhares
Assim, para quantificar a pegada hídrica, deve-se realizar o inventário de todo o processo produtivo, computando todos os usos nos diferentes consumos das águas verde, azul e cinza. A pegada hídrica total do produto é o somatório dos consumos de cada uma das águas.
Os valores da pegada hídrica são influenciados por aspectos produtivos (ex. sistema de produção, produtividade agrícola, genética e dieta dos animais, tecnologia de manejo dos dejetos, etc.) e ambientais (ex. região climática, estação do ano, etc.).
A Embrapa Pecuária Sudeste desenvolve vários estudos aplicando a abordagem da pegada hídrica na produção de bovinos de corte e de leite.
Em estudo com 17 fazendas de confinamento de gado Nelore em São Paulo, nós demonstramos que a produtividade agrícola, o manejo, as condições climáticas e desempenho animal têm impactos na pegada hídrica de bovinos. A pegada hídrica apresentou média de 5.718 litros por quilo de carne e uma grande variação, de 1.935 a 9.673 litros/kg. A pegada azul representou 15,0% desse valor e a verde, 85,0%. Estes valores não devem ser comparados com a média global para produção de um quilo de carne, que é de 15,4 mil litros de água. Ela foi calculada para semiconfinamento e considerou toda a cadeia produtiva, desde a produção de insumos até a oferta do produto ao consumidor.
Em outro estudo, demonstramos que a oferta de sombreamento artificial para Nelores confinados, reduziu a pegada hídrica azul do produto carne (figura 3). O consumo médio total de água pelos bovinos durante o ciclo produtivo, a pleno sol, foi de 3.252 litros, 8,0% maior que no tratamento com sombreamento, em que a média foi de 2.983 litros. O consumo médio diário de água por cabeça (sem sombra) foi de 40 litros ao dia, enquanto com acesso à sombra, foi de 36,8 litros.
A individualidade dos bovinos também impacta no valor da pegada hídrica. Numa pesquisa, observamos diferenças que chegaram a sete mil litros de água por quilo de carcaça, entre o valor médio e o valor máximo de pegada hídrica entre bovinos, considerando as fazes de cria, recria e engorda em confinamento. Podemos concluir que é fundamental considerar os animais individualmente para propor ações a fim de reduzir a pegada hídrica na pecuária de corte.
Figura 3.
Bovinos em confinamento com acesso a sombreamento artificial.
Fonte: Acervo do autor
Scot Consultoria: Quais são as suas perspectivas futuras sobre a produção de carne bovina e o uso do recurso de água?
Julio Cesar Pascale Palhares: Pela realidade de hoje, as perspectivas futuras não são boas. Se o setor continuar entendendo a água como um recurso abundante e barato, pouca coisa irá mudar. O ser humano dá valor ao que é medido. Quantas propriedades de pecuária de corte estão medindo seus consumos de água? Na minha observação a campo, muito poucas! Se este é um recurso fundamental para a atividade, se sem água em quantidade e com qualidade, é inviável a produção de carne bovina, se os cenários climáticos mostram que eventos de escassez serão cada vez mais frequentes e intensos, todas as propriedades deveriam ter hidrômetros instalados e monitorar seus consumos de água. Não tem como fazer a gestão do que não medimos.
Assim, como monitoramos a ingestão de matéria seca dos animais, deveríamos monitorar o consumo de água.
Dentre todas as espécies animais que produzimos para alimentação humana, a produção de carne bovina é a que tem o maior consumo absoluto de água. Portanto, ela deveria ser a pioneira em internalizar o manejo hídrico na atividade, mas não é isso que acontece. A pecuária de leite, bem como a suinocultura e avicultura, estão bem a frente neste quesito.
Como dizem: nunca é tarde para começar! Mas também dizem: o tempo voa! O tempo está voando e, com ele as fontes de água estão se tornando mais escassas e ameaçadas em sua qualidade. Precisamos fazer agora para ter boas perspectivas hídricas no futuro.
Na playlist da pecuária de corte nacional, tem um samba de uma nota só: carbono! Sim, é importante mitigar a emissão de metano e outros gases estufa que a pecuária pode emitir, mas não pode ser só isso. Qualquer sistema de produção animal lida com quatro ciclos biogeoquímicos: carbono, nitrogênio, fósforo e água. Hoje, todos estes ciclos estão ameaçados pela interferência humana.
No Brasil, particularmente, ainda temos uma situação hídrica de conforto na maior parte das regiões produtoras de carne bovina. Mas, não se esqueçam: água é um recurso natural finito. O que temos hoje, pode faltar amanhã, se não cuidarmos. A pecuária de corte tem que ampliar suas visões e entender os sistemas de produção de forma mais holística. Com isso, poderá manejar os fluxos dos recursos naturais mais assertivamente.