O aquecimento do mercado de trabalho no Brasil está revelando um desafio crescente: a falta de profissionais qualificados em diversos setores. Em setembro, o país registrou um saldo positivo de 247.818 novas vagas formais, segundo o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados). O setor de serviços liderou a geração de empregos, com 128,4 mil novas oportunidades, seguido pela indústria, comércio e construção. No entanto, a construção civil e a indústria calçadista já enfrentam dificuldades para preencher posições essenciais, impactando sua capacidade produtiva.
A construção civil, em particular, ressente-se da escassez de mão de obra qualificada, uma realidade já enfrentada em anos de forte crescimento do setor, como no início da década passada. Segundo dados de uma sondagem da FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), em setembro de 2023, 29,4% das empresas do setor apontaram a falta de profissionais capacitados como um fator que limita suas operações —o índice mais alto desde 2014.
Ana Maria Castelo, coordenadora de Projetos de Construção do FGV Ibre, explica que o setor vivenciou um forte crescimento entre 2010 e 2013, impulsionado por programas governamentais e grandes obras, como o programa Minha Casa, Minha Vida e as construções para a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Atualmente, embora o ritmo de expansão seja mais moderado, a dificuldade de encontrar trabalhadores qualificados volta a preocupar as empresas.
Medidas para atração e retenção de talentos
Para enfrentar essa escassez, as empresas têm investido em diversas estratégias. Uma pesquisa realizada em julho pela FGV revelou que 51,5% das empresas de construção investem em treinamento, 33,1% aumentaram salários e 46% adotam rodízios de equipe para atender à demanda. Gustavo Siqueira, vice-presidente de Recursos Humanos para América Latina da Saint-Gobain, afirma que a empresa está focada em reter e atrair talentos por meio de um ambiente de trabalho positivo e programas de desenvolvimento contínuo. “Nossas estratégias de desenvolvimento de pessoas preenchem as lacunas de habilidades e contribuem para a retenção e motivação da nossa equipe”, explica.
A Saint-Gobain também aposta em programas de mentoria e treinamentos internos, visando qualificar jovens talentos e promover mobilidade interna, segundo Tatiane Cardoso de Paula, diretora de RH da empresa.
A indústria calçadista busca capacitação e inovação
Na indústria calçadista, o cenário não é muito diferente. O setor, que encerrou agosto com um saldo positivo de 12,4 mil postos de trabalho, também enfrenta falta de profissionais qualificados. João Marcelo Fernandes, gerente de Recursos Humanos da fabricante Kidy, ressalta que a empresa produziu 16 mil pares de calçados por dia após o período crítico da pandemia e precisou inovar nas estratégias para atrair e reter trabalhadores. “Optamos por renovar os cargos para torná-los mais atrativos, investindo em capacitação com o apoio do Senai e promovendo um programa de apadrinhamento para novos aprendizes”, explica Fernandes.
A Kidy também implementou medidas de capacitação para criar uma equipe com habilidades múltiplas, com funcionários treinados em áreas diversas como corte, serigrafia e injeção. Incentivos à formação universitária também fazem parte da estratégia.
Concorrência com setores digitais aumenta desafios de contratação
Haroldo Ferreira, presidente-executivo da Abicalçados, aponta que a escassez de mão de obra qualificada se tornou um problema compartilhado entre setores e vê a competição por talentos como um reflexo do mercado aquecido. No entanto, ele observa que a realidade atual traz um novo fator de concorrência: “Hoje, há também a possibilidade do candidato optar por trabalhar em plataformas digitais, o que representa um desafio adicional para a indústria de transformação.”
Perspectivas e desafios futuros
Embora o aquecimento do mercado seja positivo, especialistas destacam que o futuro traz desafios, especialmente com a possibilidade de uma desaceleração no setor imobiliário devido ao aumento dos juros e ao aperto no crédito. Ana Maria Castelo, do FGV Ibre, acredita que a construção civil deve manter-se aquecida por algum tempo, mas com crescimento mais contido, especialmente se as restrições de crédito continuarem a se intensificar.
Diante desse cenário, os setores de construção civil e calçadista reforçam seus investimentos em treinamento e desenvolvimento, visando mitigar os impactos da falta de mão de obra qualificada e sustentar o ritmo de crescimento.