O Brasil registrou 3.903 assassinatos de mulheres em 2023, o maior número desde 2018, o que equivale a dez mulheres mortas por dia no país. Os dados constam no Atlas da Violência 2024, divulgado nesta segunda-feira (12) pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A taxa nacional foi de 3,5 homicídios de mulheres por 100 mil habitantes, patamar preocupante que acende o alerta para a ineficácia das políticas públicas voltadas à segurança feminina.
Segundo as estimativas do estudo, cerca de um terço dessas mortes podem ser classificadas como feminicídios — crimes motivados por questões de gênero. Para efeito de análise, o relatório considera como proxy para feminicídio os homicídios de mulheres que ocorrem dentro da residência da vítima, uma vez que, em mais de 90% dos casos, o autor é um companheiro, ex-companheiro ou familiar próximo. Nessa metodologia, 1.370 das 3.903 mortes em 2023 seriam feminicídios.
Feminicídios persistem enquanto homicídios em geral caem
Enquanto o número de homicídios gerais no país caiu 2,3% no mesmo período — atingindo 21,2 por 100 mil habitantes, o menor patamar desde 2013 — os assassinatos de mulheres não seguiram essa tendência de queda. “Isso revela um cenário alarmante”, afirma Manoela Miklos, pesquisadora sênior do FBSP. “Mesmo com uma leve melhora na segurança pública em geral, a violência letal contra mulheres segue elevada, o que evidencia a urgência de políticas específicas e efetivas.”
Violência doméstica e falhas na resposta estatal
A falta de estrutura adequada nos serviços de proteção, acolhimento e justiça penal para mulheres vítimas de violência é um dos principais fatores apontados para o problema. “Precisamos melhorar no desenho e na implementação de serviços públicos voltados à mulher em situação de violência”, defende Miklos.
O Atlas da Violência também destaca a subnotificação dos feminicídios, especialmente nos primeiros anos após a criação da tipificação penal em 2015. Segundo Daniel Cerqueira, técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea, apenas nos últimos anos as polícias civis começaram a classificar corretamente casos que antes eram registrados genericamente como homicídios.
Esse avanço, segundo Cerqueira, decorre de uma “aprendizagem institucional” e aproxima os dados policiais das estatísticas de saúde, que já refletiam o impacto da violência doméstica com mais precisão por meio do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade) e do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação).
Contexto social: patriarcado e polarização
Cerqueira também aponta que a radicalização política e o ressurgimento de discursos patriarcais contribuem para o agravamento da violência contra as mulheres. “A polarização social tem trazido à tona valores retrógrados que reforçam o patriarcado e a violência como forma de controle”, explica.
O pesquisador lembra que o feminicídio não é uma invenção recente, mas uma violência histórica e estrutural que ganhou tipificação legal apenas em 2015. “O feminicídio existe desde sempre, e as estatísticas de homicídios de mulheres são o que temos de mais próximo para medi-lo ao longo do tempo.”
Criminalidade organizada e o papel das mulheres
Embora a maioria das mortes esteja relacionada à violência doméstica, o relatório também considera a possibilidade de que parte do aumento esteja ligado à maior participação de mulheres em dinâmicas criminosas. Ainda que minoritária, a presença feminina em organizações criminosas, especialmente no varejo das drogas e em ações de apoio logístico, tem crescido. Um exemplo citado é o caso da “Mainha do Crime”, presa em São Paulo por financiar gangues de motociclistas assaltantes.
O desafio das políticas públicas
Para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o desafio central está em fazer avançar políticas públicas integradas e eficazes, que combinem educação, prevenção, acolhimento, repressão qualificada e justiça. A pesquisadora Manoela Miklos ressalta que a responsabilidade é compartilhada entre as esferas federal, estadual e municipal. “Precisamos garantir que cada mulher tenha acesso a uma rede de apoio que funcione, seja nas grandes cidades, seja no interior.”
O relatório reforça a urgência de priorizar o enfrentamento à violência de gênero como política de Estado, em vez de depender apenas de ações pontuais ou de governos específicos. “As estatísticas nos mostram o óbvio: a casa não é segura para muitas mulheres. E a omissão institucional só fortalece o ciclo da violência”, conclui Miklos.