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A sociedade do Litígio

Qual a leitura, portanto, que se pode fazer desse fenômeno na sociedade brasileira?

Fonte: Por Sergio Tamer. Professor e advogado, é presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública.


Havia quase um consenso no meio universitário e jurídico no sentido de que o Brasil tem uma cultura de litigância bastante intensa, com um número elevado de processos judiciais em tramitação. Constatou-se agora, porém, por meio do “Anuário da Justiça Brasil 2025, o que as evidências já ensejavam: que o país possui nada menos que 83,8 milhões de processos em andamento, conforme apurado no final de 2024. Qual a leitura, portanto, que se pode fazer desse fenômeno na sociedade brasileira?

Para o presidente do Supremo Tribunal Federal – STF, ministro Luís Roberto Barroso,essa judicialização massiva tem aspectos positivos e negativos: por um lado, demonstra credibilidade do Judiciário, já que as pessoas recorrem a ele para resolver seus conflitos; por outro, o volume excessivo de processos dificulta a prestação jurisdicional com a celeridade e qualidade desejadas. Mas a cultura do litígio no Brasil está longe de representar somente a face da credibilidade do judiciário, como quer o ministro Barroso.

Isso porque a judicialização excessiva pode indicar um Estado burocrático, onde normas e regulamentações complexas levam a disputas frequentes, como também pode ser um indicador de uma sociedade com baixa confiança nas instituições, onde as pessoas sentem que apenas o Judiciário pode garantir seus direitos. Evidente que esse fenômeno sobrecarrega o sistema, tornando-o mais lento e oneroso para todos os envolvidos. Mas há outras razões ainda mais tormentosas para a sociedade brasileira, como os indicativos de falhas nos serviços públicos.

De fato, a ineficiência na administração pública faz com que muitas pessoas se vejam obrigadas a recorrer à Justiça, porque direitos básicos não estão sendo garantidos de forma eficiente, como saúde, educação, moradia, ou benefícios sociais. Outro fator que leva a essa judicialização excessiva pode ser a desconfiança nas vias administrativas, em não acreditar nas soluções por parte de órgãos que possuem um enorme passivo de processos litigiosos. Assim, dentre as razões apontadas também estão: burocracia excessiva, morosidade ou falta de transparência. A população, portanto, é praticamente compelida a demandar constantemente pela existência de falhas públicas ou por parte das grandes corporações do mercado. Outro ponto que se destaca diz respeito a normas mal elaboradas ou contraditórias, haja vista que leis pouco claras ou que abrem muitas interpretações também aumentam a litigiosidade. Nesse caso, o problema está no Poder Legislativo e na regulação estatal, além, é claro, das mudanças constantes de interpretação por parte do próprio judiciário, o que se convencionou chamar de insegurança jurídica.

Dessa maneira, há muitos mais fatores a ensejar esse excesso brutal e patológico de judicialização do que simplesmente atribuir o fenômeno à “credibilidade do judiciário”, como deseja o ministro Barroso, uma vez que ela, contudo, não é excludente das demais.

Se compararmos a judicialização brasileira com países menos judicializados, como fez a “WJP Rule of Law Index 2023, que avalia a qualidade do Estado de Direito em 140 países, vamos encontrar o Brasil em uma posição nada honrosa do ponto de vista democrático: o país é o 80º no ranking geral dentre 142 outros países, apresentando os seguintes desafios principais: no item imparcialidade judicial, é o 113º da fila, um escore de 0,33 pontos, abaixo da média global que é de 0,47. E por aí vai: eficiência criminal, 135º lugar; corrupção, 77º lugar; sistema prisional, 128º lugar…Enquanto isso, países como o Chile estão no 14º lugar; a Argentina na posição 55 e a Colômbia no 65º posto nesse ranking global.

O detalhe entre esses países da América do Sul (não vale a pena comparar com os mais desenvolvidos) é que o Chile, neste caso,tem um sistema judicial mais eficiente e menos judicializado, com menor número proporcional de processos judiciais; a Argentina apresenta um sistema judicial mais equilibrado, com menos judicialização em comparação ao Brasil e a Colômbia tem um sistema judicial mais eficiente, com menor judicialização em comparação proporcional ao Brasil. Mas para não deixar de citar quem está melhor posicionado nesse campeonato civilizatório, vamos encontrar a Dinamarca com um sistema judicial exemplar e mínima judicialização.

Portanto, ao contrário do que prega o Chefe do Judiciário brasileiro, o Brasil apresenta desafios significativos em eficiência, imparcialidade e judicialização excessiva, especialmente em áreas como saúde e tributação. No nosso Continente, países como Chile, Argentina e Colômbia têm sistemas judiciais mais eficientes e menos judicializadose nações como Dinamarca, Países Baixos e Finlândia lideram globalmente em termos de qualidade do Estado de Direito, com sistemas judiciais altamente eficientes e com baixa judicialização.

Como se vê, dependendo da leitura que se faça desses quase 100 milhões de processos em tramitação no Brasil, tanto eles podem servir para gáudio de ministros do STF como para sinalizar o tormento em que vivemmilhões de brasileiros que enfrentam, no seu dia a dia, a sonegação de direitos fundamentais por parte de uma máquina administrativa tão gigantesca quanto ineficiente.

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