A audiência de custódia, procedimento criado para avaliar a legalidade da prisão em flagrante e decidir se o detido permanecerá preso ou será liberado, completa 10 anos nesta segunda-feira, 24. O mecanismo é celebrado por defensores dos direitos humanos, mas enfrenta resistência de setores do Congresso Nacional, que pressionam por mudanças para reduzir o número de solturas.
Especialistas argumentam que a audiência de custódia é essencial para garantir a integridade dos detidos e evitar prisões indevidas. No entanto, parlamentares e forças de segurança questionam a medida, alegando que ela permite a liberação precoce de suspeitos, o que comprometeria a segurança da população.
Desde sua implementação, o Brasil realizou aproximadamente 1,7 milhão de audiências de custódia, sendo 459,6 mil apenas em São Paulo, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) atualizados até setembro do ano passado. Em cerca de 60% dos casos, os flagrantes foram convertidos em prisão preventiva, enquanto 39,4% resultaram na liberação do detido. Além disso, houve relatos de tortura ou maus-tratos em 130,6 mil casos, o que corresponde a 7,6% do total.
A adoção da audiência de custódia começou em São Paulo em 24 de fevereiro de 2015, em um projeto do Tribunal de Justiça do Estado em parceria com o CNJ. O modelo rapidamente se expandiu para outros estados e, posteriormente, foi amplificado por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF). Pela norma, uma pessoa presa deve ser apresentada a um juiz em até 24 horas, que avaliará a legalidade da detenção e decidirá se há necessidade de manter a prisão ou se medidas cautelares são mais adequadas. Além disso, o magistrado deve verificar se o preso sofreu abusos por parte das autoridades.
Antes da implementação das audiências de custódia, o primeiro contato de um preso com um juiz podia levar até 120 dias, segundo dados do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) destaca que a medida ajudou a coibir prisões arbitrárias e a evitar que inocentes fossem encarcerados injustamente. A entidade também ressalta que o Brasil enfrenta uma crise penitenciária, com facções criminosas controlando presídios e aliciando novos membros entre os recém-chegados.
O país tem a terceira maior população carcerária do mundo, com mais de 880 mil detentos, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China. De acordo com o Relatório de Informações Penais (Relipen), cerca de 27,7% desse total, o equivalente a 183,8 mil pessoas, estão presas provisoriamente, sem condenação definitiva.
A professora de Direito Penal da USP, Helena Lobo da Costa, explica que a prisão deve ser uma exceção no sistema jurídico brasileiro e que medidas alternativas, como retenção de passaporte, prisão domiciliar ou comparecimento periódico à Justiça, devem ser priorizadas sempre que possível. Ela lembra que a criação das audiências de custódia foi uma resposta ao colapso do sistema prisional e à necessidade de garantir que apenas os casos mais graves resultassem em detenção.
Desde sua adoção, a medida tem sido alvo de críticas. O crescimento das facções criminosas e os recorrentes episódios de violência em várias partes do país têm levado parlamentares e forças de segurança a questionar a eficácia das audiências. Segundo Rodolfo Laterza, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), o procedimento perdeu sua função original de proteger a integridade física dos presos e se tornou um mecanismo de soltura sem critérios claros.
O secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, defendeu publicamente o fim das audiências de custódia, enquanto o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, cobrou mudanças na legislação para evitar o que chama de “prende e solta”. Para ele, casos de reincidência em que suspeitos são detidos e libertados diversas vezes demonstram a necessidade de ajustes na norma.
A revisão das audiências de custódia já foi pauta de debates no Congresso Nacional. Durante uma reunião promovida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva no fim do ano passado para discutir a PEC da Segurança Pública, governadores sugeriram dar mais autonomia aos estados para modificar a legislação penal.
Atualmente, pelo menos três projetos de lei tramitam no Congresso com propostas para alterar o funcionamento das audiências. O PL 714/23, do deputado Coronel Ulysses (União-AC), propõe que acusados de crimes hediondos, roubo e associação criminosa qualificada sejam automaticamente submetidos à prisão preventiva. O texto também sugere ampliar de 24 para 72 horas o prazo para a realização da audiência, sob a justificativa de reduzir a sobrecarga do sistema judiciário.
Outro projeto, o PL 226/24, já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e aguarda tramitação na Câmara. De autoria do ex-senador e atual ministro do STF Flávio Dino, com relatoria de Sergio Moro, o texto prevê que a reincidência de infrações seja um critério determinante para manter a prisão do detido.
O PL 321/2023, de autoria da deputada Julia Zanatta (PL-SC), já foi aprovado na Câmara e segue em análise no Senado. A proposta permite que as audiências de custódia sejam realizadas por videoconferência, um modelo adotado durante a pandemia de covid-19. O objetivo seria agilizar os processos e reduzir custos operacionais.
Enquanto parlamentares que defendem as mudanças alegam que elas podem reduzir a impunidade e melhorar a segurança pública, entidades do setor jurídico alertam para possíveis violações à presunção de inocência e riscos de superlotação carcerária. A discussão sobre o futuro das audiências de custódia deve continuar a dividir opiniões e influenciar o debate sobre segurança e justiça no Brasil.