Brasil e os valores ocidentais

Não se trata apenas de conviver com o diferente, mas de aferir o grau de compatibilidade entre sistemas de valores.

Fonte: Por Sergio Tamer, presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública - CECGP


O choque de civilizações de que nos fala Sartori ou mesmo Samuel P. Huntington, geralmente ocorre quando culturas com valores fundamentais muito diferentes entram em contato prolongado, especialmente dentro do mesmo espaço político, sem mecanismos adequados de integração. Dessa forma,sociedades democráticas ocidentais, que se sustentam em valores como liberdade individual, igualdade jurídica, secularismo e direitos das minorias, por exemplo, geralmente são confrontadas com algumas culturas que mantém costumes e leis próprias, normalmente baseadas em componente religioso. Não se trata apenas de conviver com o diferente, mas de aferir o grau de compatibilidade entre sistemas de valores.

A referência, assim, a “valores ocidentais”, está atrelada a um conjunto de princípios éticos, jurídicos, políticos e culturais que se formaram na tradição da Europa Ocidental e que depois se expandiram para as Américas e a outros lugares através da colonização, do comércio e da globalização.Em sua construção ao longo do tempo, esses valores obtiveram, dentre outras, a contribuição do estoicismo greco-romano, do cristianismo, do Iluminismo, bem como da Declaração Universal dos Direitos Humanos.Variando conforme a época, região e corrente de pensamento, todavia há um núcleo consensual compartilhado pelo Ocidente que inclui a dignidade humana e os direitos individuais; a igualdade perante a lei; aliberdade de expressão; o racionalismo e a ciência; a democracia e a participação; o Estado de direito; o secularismo; a economia de mercado; o pluralismo e a tolerância. Contudo, o problema central se dá quando o multiculturalismo é entendido como aceitação irrestrita de práticas que contradizem os fundamentos da democracia liberal — como, por exemplo, a desigualdade de gênero justificada por tradição religiosa.

É evidente que a imigração maciça e o multiculturalismo, sem que haja a necessária integração, provocam um forte impacto nos valores e na coesão interna das sociedades democráticas ocidentais. Nesse sentido, há muitas comunidades isoladas culturalmente dentro da Europa que não adotam as normas e os princípios liberais, daí serem necessárias políticas de integração cultural. Aqui mesmo, no Brasil, em um pequeno município da Região Sul, em uma comunidade de imigrantes alemães, a língua portuguesa não estava sendo ministrada nas escolas primárias o que dificultaria a integração dessas crianças, prática que foi descontinuada por intervenção das autoridades locais. É importante, portando, a adoção de políticas de integração cultural que preservem valores básicos da sociedade anfitriã ao mesmo tempo em que deve haver uma limitação ao multiculturalismo absoluto.

Mas no âmbito internacional, após o fim da Guerra Fria, o choque de civilizações passou a existir entre blocos regionais, mediante os conflitos entre grandes culturas globais como a ocidental, a islâmica, a chinesa, a hindu, a ortodoxa etc. Nesse âmbito, a origem do “choque”, para Huntington, estaria em uma falha na integração cultural, sobretudo na tolerância acrítica a práticas que ferem direitos fundamentais. E essas diferenças históricas, religiosas e culturais profundas, teriam sido potencializadas pela globalização e pela competição geopolítica. É importante, neste cenário, reconhecer as diferenças, porém procurando obter uma coexistência pacífica, ainda que os conflitos sejam inevitáveis. O Brasil, assim, não pode se afastar dos valores ocidentais neste momento em que vem sofrendo forte pressão tarifária, por parte dos EUA, mesmo que legitimamente busque parcerias comerciais em países que não comungam dos mesmos padrões democráticosque temos. O alinhamento comercial, nesses casos, não pode ensejar nenhum tipo de alinhamento ideológico. Em momentos de crise, como ensina a milenar cultura chinesa, deve-se buscar as oportunidades que brotam nessas ocasiões, porém sem perder de vista o fato de sermos, historicamente, parte do mundo ocidental no sentido cultural, político e religioso, embora com características próprias, sul-americanas, que resultam de uma mistura complexa de raízes europeias, indígenas e africanas.

Nenhuma crise ou pressão econômica, portanto, poderá afastar o Brasil de seu eixo cultural e político, dos seus valores democráticos, pois embora o embate econômico esteja a ocorrer, neste momento, dentro do mesmo campo civilizacional, mais precisamente com os EUA, não podemos cometer o desatino de ir além das questões comerciais com outros parceiros internacionais e passar a apoiar, ideologicamente, regimes políticos que não se identificam com os nossos valores democráticos.

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